quinta-feira, 12 de outubro de 2017

MARCAS Uma semana depois da tragédia, famílias tentam recomeçar As imagens daquela manhã ainda não saíram da memória de quem sofreu com o incêndio da creche Gente Inocente

"Às vezes ela conta do nada sobre aquele dia", conta Mirian Sandraia Souza Oliveira, 24, mãe de Duda


PUBLICADO EM 11/10/17 - 21h03

Era uma manhã alegre para a turminha da Maria Eduarda, de 2 anos e meio. A programação começou cedo, e, às 7h, o Maternal 2 já tinha brincando no pula-pula e na piscina de bolinha. Pouco mais de duas horas depois, Duda e seus 15 coleguinhas se divertiam em um banho de mangueira delicioso, especialmente refrescante para o calor de Janaúba, quando o vigia Damião Soares dos Santos, 50, atacou a creche Gente Inocente. Guiada pela professora Selma Rejane Pereira da Cunha, 42, a turma conseguiu escapar em meio ao fogo e à fumaça. Mas, uma semana depois, as imagens daquele dia ainda continuam vivas para muitas crianças.
"Às vezes ela conta do nada sobre aquele dia, fala que viu fogo, que não sei quem estava correndo. Hoje ela viu um matagal pegando fogo e me perguntou: 'mamãe vai pegar eu?'", conta Mirian Sandraia Souza Oliveira, 24, mãe de Duda. "Tem vezes que ela começa uma birra, um chororô que não fazia antes. Também sente mais falta do pai, quer ficar junto da gente o tempo todo".
Uma semana se passou da tragédia que deixou 11 mortos no Norte de Minas. Pouco a pouco, as famílias dos sobreviventes tentam se reerguer, mas admitem que não é nada fácil retomar a rotina em meio a tanta tristeza. Abaladas, sentem-se perdidas, com medo e ainda meio sem rumo. "Tenho de voltar a trabalhar na sexta-feira e não sei como vai ser. Está sendo muito difícil tudo isso. É uma coisa que não dá para descrever. Ninguém tem noção do que a gente está vivendo", diz Mirian. "É claro que todo mundo ficou comovido, mas naquela creche, a gente se via todos os dias, sabe?", conta a mãe.
Duda ficou dois dias internadas em Montes Claros por ter inalado muita fumaça, mas hoje está bem. "Quero um futuro para ela diferente do meu, por isso tenho que deixar na creche, para ir trabalhar. Mas a gente começa a pensar se o sacrifício valeu. Eu podia ter perdido minha filha, sem tempo de compensar todo esse sacrifício... Trabalho muito para dar uma vida melhor para ela. Mas será que vale a pena sonhar tão alto?", pergunta a mãe da pequena.
Para Flávia Nunes Rocha, 29, mãe de Luciano Gabriel, de 1 ano e 11 meses, o recomeço também dói. No dia da tragédia, Flávia estava colocando feijão no fogo quando ouviu a vizinha gritar que a creche estava pegando fogo. "Montei na minha bicicleta e saí correndo. Chegando lá procurei e não encontrei meu filho, quis entrar na creche e o policial não deixou. Foi um desespero danado, até ele aparecer no colo da professora", conta.
Luciano Gabriel foi para casa com a mãe, mas começou a tossir sem parar, com cuspe preto, então precisou ir ao hospital. "Achei que iam dar algum remédio e a gente ia voltar, mas o médico já mandou direto para Montes Claros", conta Flávia. Depois de três dias, o garoto foi liberado, para alívio da mãe. No entanto, agora, o menino, sempre dócil, está mais agressivo. "Hoje ele pegou uma correia e deu na cara da irmã. Às vezes ele fala: 'mamãe, foô, foô', tentando falar fogo, e faz barulho de sirene. Aquilo ficou na cabeça dele".
Preocupada, Flávia diz que acorda assustada todas as noites e vai até o filho para conferir se está respirando normalmente. "Ele está mais carente e muito dengoso. É pequeno, mas sente emoções", afirma. "O recomeço vai ser difícil. Eu preciso trabalhar, sou mãe solteira e pago aluguel, mas a vontade é de não tirar ele de perto de mim mais", diz. "Até passar o momento de susto e ver se os pulmãozinhos dele estão realmente limpos, meu filho vai ficar comigo".
Mesmo com as dificuldades, porém, as mães têm fé de que, com o tempo, tudo vai se acalmar. Buscando força umas nas outras, e também nas orações, elas vão levando um dia de cada vez. "A perda é muito grande. Fora os que perderam seus filhos para sempre, muitos perderam a confiança na escola como um lugar seguro. Mas eu sei que não foi a creche que causou tudo isso. Agora só o tempo mesmo para a gente se adaptar de novo", diz Mirian.
Retorno
A Secretaria Municipal de Educação está providenciando um espaço para receber os alunos da creche Gente Inocente mas, segundo a secretária Luzia Angélica de Fátima Aguiar, a prioridade, agora, é cuidar das famílias. "Vamos fazer um trabalho pedagógico diferente. Não estou preocupada agora com alfabetização, com leitura. Precisamos é acolher essas famílias e fazer com que a volta à escola seja tranquila", explica.
Para ajudar um pouco no processo de reinício após tanta tristeza, integrantes da Cruz Vermelha farão nesta quinta-feira, em Janaúba, uma ação em comemoração ao Dia das Crianças, com a entrega de mais de 1.000 brinquedos que foram recolhidos em Belo Horizonte. "Minha menina de 7 anos me pediu para ir. Falei com ela que não tinha clima para isso, mas ela me respondeu: 'mãe, não tira essa alegria nossa não", conta Flávia, que acabou concordando em levar os filhos.


"O Lu (Luciano Gabriel) faz dois aninhos no próximo dia 26. Eu não ia fazer nada, mas decidi que agora vou fazer um bolinho para comemorar. Não tenho dinheiro, mas o pessoal ajuda e vamos dar um jeito. Merece, né?". Merece sim, Flávia, e como merece.

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