sábado, 25 de janeiro de 2014

O que é a inteligência e qual sua relação com a felicidade

Por 
Psicólogo pela FUMEC em 2001, graduado em Filosofia pela UFMG em 2006 e Mestre em Filosofia pela UFMG. Atua como psicólogo clínico em Belo Horizonte. Escritor autor de quatro livros, editor do blog ‘No gabinete do Psicólogo’ e da página ‘Psicologia no Cotidiano’ no facebook (www.facebook.com/cotidianoepsicologia).

Nas diversas linhas de Psicologia, os teóricos mais variados costumam definir a inteligência como “capacidade de aprendizagem”, “capacidade de adaptação”, “habilidade para executar tarefas”, “para estabelecer relações entre as coisas”, etc. No geral, todas estas e outras tantas definições de inteligência bem poderiam dizer respeito ao funcionamento de um robô ou um computador. Não admira que, por isso, desde meados do século passado a temática da “inteligência artificial” esteja tão em pauta. É bastante comum a crença de que computadores podem adquirir uma inteligência humana. Pesquisadores sérios e respeitados nas linhas de psicologia cognitiva e neurociência despendem todo o seu esforço na pesquisa desta possibilidade. Mas, como definir a inteligência de maneira especificamente humana?
A Psicologia também é um produto cultural, e, como todo produto desta espécie, ela tem largo fundamento em nosso senso-comum. Isso não se aplica apenas à Psicologia. Nossa Física, por exemplo, se sustenta na idéia de matéria como alguma coisa inanimada, oposta ao que se chama ‘vida’, de funcionamento mecânico e impessoal, em plena conformidade à nossa visão de mundo espiritualizada pelo cristianismo. E esta visão de mundo é válida inclusive para a maioria dos ateus, uma vez que também eles (e não apenas ‘também’ eles, mas principalmente eles) advogam a favor desta oposição entre matéria e vida, conferindo toda a validade ao que é material e desdenhando tudo o que está além desta esfera. Não percebem eles que a simples distinção entre ‘matéria’ e ‘vida’, mesmo que acompanhada do descrédito daquilo que, hipoteticamente, não seria material, já trás implícita o mesmo espiritualismo cristão daqueles que afirmam a validade de uma realidade metafísica (para além da realidade física). Por sua vez, a visão de mundo que não fizesse uma distinção do tipo, e que já tratasse a matéria como uma substância animada (animada = provida de alma), estaria rompendo com o senso-comum cristão no qual a Física se sustenta. A Psicologia que temos hoje também se fundamenta no senso-comum que foi construído ao longo de mais de 5000 anos de uma cultura influenciada pelo judaísmo e pelo cristianismo. Assim, desde cedo aprendemos a chamar de ‘inteligentes’ aquelas pessoas que aprendem com facilidade e se saem bem na escola, ou simplesmente aquelas que são eruditas e sabem falar de tudo um pouco.
Uma definição tão estreita exclui muita coisa que também estamos acostumados a classificar de ‘inteligente’. Frequentemente admiramos pessoas espirituosas, críticas e criativas pela sua inteligência. Por que então a espirituosidade, a crítica e a criatividade aparecem tão pouco das definições formais de inteligência? Na verdade, elas aparecem disfarçadas. A espirituosidade pode ser entendida como capacidade de adaptação; ‘crítica’ e ‘criatividade’ como habilidade para estabelecer relações entre as coisas; inversamente, ‘espirituosidade’ também é habilidade para estabelecer relações entre as coisas, e a crítica e a criatividade também são formas da capacidade para se adaptar. No frigir dos ovos, ainda estamos no campo do que se poderia esperar do funcionamento de um robô ou computador.
Entretanto, se eu tentasse aqui refutar a noção de inteligência definida como ‘capacidade de aprender’, ‘habilidade para estabelecer relações entre as coisas”, etc., estaria fadado a fracassar. Se estas definições se mostram insuficientes para caracterizar a inteligência humana, nem por isso devemos propor uma diferente. Talvez, o correto seja exatamente procurar a dimensão humana que está faltando a estas definições e lhas acrescentá-la. 
A dimensão humana faltosa nas definições clássicas de inteligência não pode ser senão uma finalidade que não estaria ao alcance das máquinas; uma finalidade humana, ou, para não excluirmos levianamente os animais, uma finalidade cuja realização esteja restrita aos seres vivos. Segundo Aristóteles, a felicidade é o bem supremo buscado por todos os homens (‘Ética a Nicômaco, Livro X). Se a felicidade é o bem supremo que todos os homens buscam, ela é o objetivo humano por excelência, ou a finalidade que caracteriza a existência humana qua humana. Não há finalidade mais humana que a busca da felicidade. E, se assim for, esta é a dimensão humana que devemos acrescentar às definições clássicas de inteligência.
Todas as capacidades e habilidades que denotam a inteligência em sentido clássico somente denotam inteligência em sentido humano na medida em que se traduzem na capacidade e na habilidade de ser feliz. Mas, o que é a felicidade? Epicuro1 nos diz que:
Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são fundamentais para a felicidade, outros, para o bem-estar corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz: em razão desse fim praticamos todas as nossas ações para nos afastarmos da dor e do medo. Uma vez que tenhamos atingido esse estado, toda a tempestade da alma se aplaca, e o ser vivo, não tendo que ir em busca de algo que lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser o bem da alma e do corpo, estará satisfeito. De fato, só sentimos necessidade do prazer quando sofremos sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa necessidade não se faz sentir.
A felicidade, segundo Epicuro, é o bem-estar do corpo e a serenidade do espírito. Para alcançarmos estes fins, devemos evitar a dependência de desejos excessivos, por três razões: (1) Tudo que é excessivo é difícil de conseguir, e o desejo pelo que é excessivo poderá nos manter muito mais tempo insatisfeitos que satisfeitos. Porém, (2) mesmo aqueles que possuem facilidade para satisfazer desejos excessivos devem evitá-los, uma vez que o prazer e o luxo excessivo nos tornam dependentes, e na dependência de alguma coisa vivemos atormentados pelo medo de perdê-la. A (1) frustração por aquilo que não temos e o (2) medo de perder aquilo que já possuímos constituem os fundamentos de todas as ‘perturbações da alma’ que denominamos sofrimento. Em acréscimo, o (3) desfrutar imoderado de luxos e prazeres excessivos também compromete a saúde do corpo. Com a alma perturbada por desejos inúteis e o corpo debilitado por eles não há felicidade, segundo Epicuro. O homem feliz é aquele que se habitua às coisas simples:
Consideramos ainda a auto-suficiência um grande bem; não que devamos nos satisfazer com pouco, mas para nos contentarmos com esse pouco caso não tenhamos o muito, honestamente convencidos de que desfrutam melhor a abundância os que menos dependem dela; tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o que é inútil. Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas, desde que se remova a dor provocada pela falta: pão e água produzem o prazer mais profundo quando ingeridos por quem deles necessita. Habituar-se às coisas simples, a um modo de vida não luxuoso, portanto, não só é conveniente para a saúde, como ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar corajosamente as adversidades da vida: nos períodos em que conseguimos levar uma existência rica, predispõe o nosso ânimo para melhor aproveitá-la, e nos prepara para enfrentar sem temor as vicissitudes da sorte.
Quem se habitua às coisas simples consegue viver com pouco, se necessário, e aproveitar a abundância enquanto ela estiver presente, sem o medo de perdê-la amanhã. Não se vive angustiado pela sua falta, nem se teme pela sua perda, e se consegue desfrutar dela em tempo presente. Com efeito, o desejo e o medo são direcionados ao futuro. Só desejamos aquilo que ainda não temos ou não somos, e vivemos o presente projetando no futuro a realização de nossos anseios. E igualmente só tememos aquilo que ainda não aconteceu. Todo medo é o medo de um acontecimento futuro possível. Se estivermos de frente a um leão, em tempo real, o medo não se refere ao leão que estamos enfrentando, e sim ao ataque que ele ainda não realizou, mas que pode realizar. Se o ataque já ocorreu, não há mais medo. Pode haver o sofrimento pelos danos sofridos (caso o ataque nos deixe vivos), mas o medo já passou.
Esta análise do desejo e do medo é a chave para compreendermos como a definição de Epicuro para a felicidade pode ser verdadeira se em nosso mundo atual o que vemos, de forma geral, são pessoas que buscam a felicidade em toda forma de excessos. A busca pelos excessos visa apaziguar o desejo por aquilo que não temos e o medo de perdermos o que já possuímos. O desejo e o medo são direcionados ao futuro, mas o sofrimento causado por eles é experimentado no presente. O presente sofrido se torna passado doloroso. E a forma habitual de se lidar com o passado doloroso que não encontra consolo no presente é adiar e projetar sua mitigação para o futuro, um futuro que jamais se realiza. Na presença de um passado de dor e de um futuro incerto e impalpável, são os excessos que entorpecem nossa consciência do aqui e agora em nossa tentativa de aliviar as perturbações de nossa alma mergulhando-a em mais perturbações ainda.
A felicidade significa ausência de perturbações da alma e saúde do corpo. Enquanto o caminho proposto por Epicuro é o da eliminação dos desejos e medos que causam uma coisa e outra, o caminho que nosso mundo vem escolhendo é o de sanar o sofrimento causado por nossos medos e desejos mergulhando-se até o pescoço nas perturbações causadas por eles, como se as perturbações do passado pudessem ser anuladas por mais perturbações presentes. No entanto, apesar de os meios propostos por Epicuro serem muito diferentes dos meios utilizados por nós, o que nós buscamos na felicidade é o mesmo que ele apontou: Saúde e paz de espírito.
E não há dúvida de que tanto o caminho proposto por Epicuro quanto o caminho escolhido por nós necessitam, para serem trilhados, de uma grande dose de capacidade de aprendizagem, capacidade de adaptação, de estabelecer relações entre as coisas, criatividade, espirituosidade, habilidade para executar tarefas mil, e tantas outras coisas que entram nas mais variadas definições de inteligência da psicologia clássica. O que vai definir se este conjunto de capacidades e habilidades representa de fato um alto Q.I é a medida da felicidade alcançada pelo sujeito que as coloca em prática. Para trilhar ambos os caminhos é preciso inteligência; mas, uma vez que, pelo visto, um destes caminhos tem se mostrado completamente ineficaz na produção da finalidade por ele buscada, somente a quem escolhe o caminho restante poderia ser concedida a classificação em ‘inteligência superior’, o que nos levaria a questionar seriamente os níveis de inteligência apresentados por todos os nossos intelectuais, tecnocratas, cientistas, estadistas e mesmo as pessoas comuns de qualquer espécie.

1 CARTA SOBRE A FELICIDADE (A MENECEU), Tradução de Álvaro Lorencini e Enzo Carratore

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