Christian Dunker
1.Alienação
A primeira versão do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-1), publicada em 1952, descrevia alterações mentais nos mais diversos quadros orgânicos – inflamações cerebrais, alterações metabólicas, estados pré ou pós natais, efeitos psíquicos, decorrentes do mal funcionamento do aparelho circulatório e dos tecidos, compunham inúmeros subgrupos que davam “forma médica” aos problemas mentais. Isso deve ser associado ao conceito central de reação, presente neste que foi o embrião e o modelo para a racionalidade diagnóstica vindoura. Essa é uma estratégia que remonta a origem da psiquiatria. Os transtornos mentais (mental disorders) teriam uma causa, que é orgânica, e suas alterações psíquicas seriam apenas reações a estas. Primeiro a sífilis (Bayle, 1879), depois a epilepsia (Charcot, 1887) e, finalmente, as demências (Kraeplin, 1883) constituíram-se em modelos de doenças orgânicas com causas definidas, cursos regulares e desenlaces previsíveis, e que serviam como protótipos para a tese de que a doença mental é de fato uma doença, condição para fazer da psiquiatria uma ciência médica. Pinel inaugura a psiquiatria moderna, em 1809, tendo a alienação como conceito fundador. E alienação implica tanto perda da unidade na história de si quanto bloqueio das relações dialéticas de reconhecimento. Se muitas doenças levam a estados de alienação, por exemplo, a perda provisória da consciência na epilepsia, a desagregação da unidade das funções psicológicas nas demências, ou a suspensãoda reação ao outro na catatonia sifilítica, ainda assim, a alienação, ela mesma, parece depender da estrutura da consciência.
Entre o conceito de alienação e o horizonte da doença fundadora, a psiquiatria dependia, até a Segunda Guerra Mundial, de uma espécie de complemento psicológico-filosófico para caracterizar seus quadros. O início do fim desta crise de nascimento ocorre na década de 1950, quando se decide pensar os sintomas psíquicos como uma reação, e a etiologia orgânica comoação. Surgia, assim, o DSM-1 como primeiro manual orientado para acabar com a confusão de línguas entre organicistas e psicodinâmicos. Três grupos clínicos – aliás, os três mais importantes – não se comportavam muito bem no interior da divisão entre ação (causa) e reação (efeito): o do “transtornos psiconeuróticos”, o do “transtornos de personalidade” e o da borgeana classe dos “transtornos de origem psicogênica ou sem causa tangível ou mudança estrutural claramente definida”, no qual estavam incluídas a paranoia, a esquizofrenia e areação maníaco-depressiva. O título sintetiza a polêmica: se temos uma origem psicogênica, a causa é conhecida, ainda que psíquica. Se não há causa tangível, poderíamos imaginar uma causa intangível ou a ser descoberta. Finalmente, a ideia de uma mudança estruturalsubentende que pode haver uma espécie de interação tão difícil de distinguir entre causas e efeitos que devemos nos ater, antes de tudo, à lógica da transformação clínica e, a partir disso, inferir a unidade das classes de transtornos.
Os “transtornos psiconeuróticos”, segundo grupo isolado pelo DSM-1 sob clara influência da psicanálise, tem como “característica principal os transtornos de ‘ansiedade’, que podem ser diretamente sentidos e expressos ou controlados de modo inconsciente e automático pela utilização de vários mecanismos de defesa (depressão, conversão, deslocamento etc.). Em contraste com pacientes com psicose, pacientes com transtornos psiconeuróticos não exibem flagrantes falsificações da realidade externa (delírios, alucinações, ilusões) e eles não apresentam franca desorganização da personalidade. Ou seja, trata-se de um diagnóstico estrutural, pois designa o princípio formativo do sintoma (deslocamento, conversão) psicogênico, porque não possui causa orgânica e diferencial, uma vez que permite se opor ao grupo das psicoses. Clinicamente, a única divisão estrutural que tem sobrevivido aos séculos é a que se dá entre psicoses e neuroses.
2. O DSM-3 – Fim do casamento entre psicanálise e psiquiatria
Em 1968, o DSM-2 suprimia o papel central da reação, mas mantinha a oposição acima apresentada entre neurose e psicose. Contudo, nos anos 1970, uma primeira onda crítica se abateu sobre o projeto do DSM. Em 1973, veio à luz o experimento de Rosenham, no qual diversos pesquisadores simularam a existência de um único sintoma psiquiátrico, dizendo que ouviam vozes, mas não muito claras (alucinação). Eles se apresentaram a hospitais psiquiátricos norte-americanos e, após 60 dias, a ampla maioria dos hospitais não detectou a fraude. Indignados, os psiquiatras desafiaram Rosenham a enviar falsos pacientes a seus hospitais, com a certeza de que estes agora seriam apanhados. De 193 pacientes, 41 foram dados por impostores e 42 foram qualificados como suspeitos, apesar de Rosenham não ter enviado nenhum falso paciente. A confusão de línguas era tamanha na psiquiatria do final dos anos 1970 que, quando o DSM-3 resolveu abolir a força da autoridade e ceder aos critérios da nascente “Medicina Baseada em Evidências”, isso foi saudado como o início de uma revolução científica. Depois de História da loucura, de Michel Foucault (1965), do movimentoantipsiquiátrico, de filmes como Estranho no ninho (1975), e da luta dos civil rights movements norte-americanos pela despatologização da homossexualidade, a ideia de uma classificação convencional, normativa e arbitrária, de “transtornos mentais”, tendo em vista a unificação de linguagens, foi recebida com esperança. Isso facilitaria o trabalho dos serviços de saúde mental, das coberturas de empresas de seguro, da pesquisa científica e da alocação de recursos públicos em saúde mental. Enfim uma gota de luz em um oceano de trevas. Traçava-se uma linha divisória clara entre os problemas da vida e a verdadeira doença mental. A chegada do DSM-3 se fazia acompanhar do processo da desinstitucionalização de pacientes crônicos, da luta antimanicomial. Essa reformulação das políticas de saúde mental apoiou-se também na ascensão dos tratamentos farmacológicos e na crítica da psicanálise como fonte inspiradora não de uma área exterior, mas da própria diagnóstica psiquiátrica. A subtração dapsiconeurose no DSM-3 tornou-se o símbolo do fim do falido casamento psicopatológico entre psicanálise e psiquiatria.
Mas assim como havia uma reação crítica da psiquiatria interessada em expurgar o conceito de neurose ou psiconeurose, havia, já nos anos 1950, uma ação psicanalítica que criticava seus próprios fundamentos clínico-diagnósticos, tanto na psicanálise de Lacan quanto nas pesquisas de Adorno sobre a personalidade autoritária e, mais adiante, na psicanálise argentina de esquerda.
Lembremos que a última definição remanescente das psiconeuroses, no DSM-2, definia esse grupo clínico pela ansiedade e pelos mecanismos de defesa: a depressão, a conversão e odeslocamento. Não é difícil perceber aqui os quatro elementos pelos quais a neurose será substituída até a recente revisão imposta no ultimíssimo DSM-5: “transtornos de ansiedade”, cujo desencadeamento depende do objeto (de separação, mutismo seletivo, fobias específicas, pânico, fobia social), “transtornos depressivos”, cujo modelo é o luto (depressão maior, depressão disruptiva, distimia, disforia pré menstrual), “sintomas somáticos”, organizados ao modo da conversão (hipocondria, transtorno de conversão, transtornos factícios) e “transtornos obsessivo-compulsivos”, nos quais o deslocamento seria a “reação” fundamental (transtorno do dismorfismo corporal, acumulação, trocotilomania, transtorno de escoriação). Acrescentando-se a essas quatro categorias os transtornos de trauma estresse e dissociação, os que inibem ou exageram funções (alimentação, sono, excreção, sexualidade) e as disforias de gênero, reencontramos no DSM-5 todos os elementos classicamente descritos pela psicanálise, com sua tríade diagnóstica formada por angústia, sintomas e inibições neuróticas.
3. A neurose fragmentada
Até aqui, pôde-se ver que, por trás da luminosa nova ciência psiquiátrica do DSM-5, ainda jaz o cadáver psicanalítico da neurose. E o sinal maior deste desmembramento forçado é que tanto a depressão, antes um subtipo da aposentada categoria dos “transtornos de humor”, quanto a ansiedade são tidas como situações de alta co-morbidade, sendo declaradamente raro encontrar pacientes com apenas um desses dois diagnósticos. Na discussão sobre a epidemia mundial de depressão e ansiedade, quando pesquisas apontam São Paulo como a capital mundial dos transtornos mentais (com cifras em torno de 25% da população), é preciso observar a total indiferença deste instrumento diagnóstico no que diz respeito à possível relação indutora entre os sintomas. Primeiro um período de ansiedade, depois de depressão e, finalmente, a emergência de uma ideia obsessiva, uma fobia ou uma conversão, seguida de nova onda de ansiedade. Nada mais antigo e constante nos pacientes de Freud do que percursos que intercalam períodos de angústia, crises narcísicas e formação de sintomas. A neurose, e principalmente a neurose histérica, é uma categoria fundamental para a psicanálise, justamente porque permite explicar, por meio de uma hipótese única, regras de formação para a existência da variedade extensa de sintomas diferentes em um mesmo caso. Um paciente como o “homem dos ratos”, atendido por Freud em 1907, receberia hoje, facilmente, sete ou oito diagnósticos sobrepostos, em vez da única e genérica neurose obsessiva.
Mas o problema crucial que se perde de vista com o sequestro da neurose como categoria diagnóstica é que os diferentes sintomas de um sujeito exprimem e se articulam em uma narrativa de sofrimento. Eles se embaralham com a história da vida das pessoas, com seus amores e decepções, com suas carreiras e mudanças, com seus estilos e escolhas de vida, com suas perdas e ganhos. A história da doença confunde-se com a história do doente, sob o qual esta age e reage, dizia Karl Jaspers (1883-1969). Desde o DSM-2, tentava-se contornar o critério de Kurt Schneider (1897 1967), pelo qual a psiquiatria deve se ocupar dos que “sofrem e fazem sofrer”. Mas o arremedo, que parece ter se tornado definitivo para esse problema, é o da categoria dos “transtornos de personalidade”. Ela compreende as formas subclínicas de sofrimento, nas quais é difícil dizer onde começa o sintoma e onde termina o eu. No DSM-5, tais transtornos foram agrupados em três clusters, o dos “estranhos” (personalidade paranoide, esquizoide e esquizo-típica), a dos “dramáticos” (personalidade antissocial, borderline, histriônica e narcísica) e a dos “intimidados” (personalidade dependente e obsessivo-compulsiva). Ainda que tais agregados não tenham sido “consistentemente validados”, segundo o próprio Manual, sua função denuncia uma espécie de resgate pago aos psicólogos pela psiquiatria. Definidas como formas inflexíveis, pervasivas e estáveis ao longo do tempo, esses transtornos são isolados em um grupo separado, embora comparável com os grandes sintomas esquizofrênicos, paranoides, histéricos e obsessivos. A exceção digna de nota são os gruposborderline e narcísico que, mesmo entre os psicanalistas, não são claramente definidos nem entre as psicoses, nem entre as neuroses. A dissociação entre sintomas e suas formas de vida correlatas é de tal monta que nenhuma palavra é dedicada a uma ocasional relação entre sintomas do espectro “obsessivo-compulsivo” e “personalidade obsessivo-compulsiva”. Ora, o narcisismo é justamente essa função que produz unidades, ainda que alienadas de si, do outro e do mundo. A definição clássica de neurose era suficientemente integrativa em psicanálise porque, ao menos em tese, ela poderia explicar tanto a formação de sintomas quanto a economia narcísica, ou as transformações e identificações da personalidade, que lhes é correlata. Ao excluir relações entre sintomas e funcionamentos psíquicos, o psiquiatra fica, por assim dizer, desincumbido de fazer apreciações sobre a personalidade do paciente. Isso tem trazido um efeito dramático, estranho e intimidador para os clínicos, que relatam, frequentemente, ser negada a eles, nas contingências reais de sua prática, a possibilidade de escutar histórias de vidas de seus pacientes, restringindo-se a anamnese do relato sobre o sintoma.
4. Sofrimento e narrativa
Muitos psiquiatras questionam as renovações feitas pelo DSM-5, porque elas não se apoiam de fato em novas descobertas científicas, mas em redefinições nominalistas de sintomas e definições operacionais de síndromes. Isso valoriza ou sobrevaloriza o diagnóstico mediante exame retrospectivo dos efeitos de medicações cujo verdadeiro mecanismo de ação se desconhece. Ou seja, a unidade perdida com o sequestro da neurose, como hipótese que unifica história de vida, sintomas e personalidade, é reencontrada na unidade de um objeto: a medicação. A hipótese da recaptura da noradrenalina para explicar o mecanismo da ansiedade, proposta em 1958, foi expandida para a relação entre a dopamina e a esquizofrenia, nos anos 1960, para a serotonina e a depressão, nos anos 1970, e, finalmente, ligando a endorfina aos circuitos do prazer na década de 1980. Observe-se que se trata de uma mesma matriz hipotética que se reaplica em diversos casos. Em todos eles, o transtorno é considerado umdéficit de substância neuronal. A medicação entraria, assim, de modo compensatório, fazendo o que o corpo não consegue fazer por si próprio. Mas tal hipótese deixa de lado o caso em que certos estados mentais sejam produzidos de forma totalmente inédita na propriocepção, na experiência corporal e na economia de significação do sujeito, como parece ocorrer com o uso continuado do metilfenidado (conhecido popularmente como Ritalina). Ou seja, há sim um “antes” e um “depois” da medicação que estabelece uma nova unidade no eu, mas esta é criada pela medicação e não pressuposta por ela.
O caráter mais ou menos questionável das descobertas em torno dos neurotransmissores se faz acompanhar de outro fato mais difícil de entender. Palavras, principalmente metáforas, narrativas ou experiências de linguagem em contexto intersubjetivo induzem a receptação e a distribuição de neurotransmissores como dopamina, serotonina, noradrenalina e endorfina. Palavras mudam o seu cérebro, e o seu cérebro muda suas palavras, mas não da mesma maneira. O real prejuízo que temos com o sequestro da noção de neurose para o tratamento de nossos pacientes não é que agora eles não querem mais saber da arqueologia infantil, nem das conexões sexuais e esquecidas na gênese histórica de seus sintomas, mas que eles se vejam sancionados por um dispositivo diagnóstico com força de lei e poder disciplinar na desconexão entre seus próprios sintomas. Ou seja, uma das características mais antigas e mais simples da neurose – a saber, o fato de que nela o sujeito não liga (aliena) os pontos que unem sua vida, seus sintomas e sua personalidade – tornou-se a forma oficial e padronizada de pensar a loucura. A neurose opera pela desconexão entre contextos narrativos, como que a dizer que a vida sexual é uma coisa, a profissional é outra, a familiar uma terceira coisa, os cuidados com o corpo são algo a parte, as fases da vida um problema isolado. A vida pessoal é apenas “outro setor” desta grande loja de departamentos na qual nos transformamos. Mas todo aquele que se vê diante de uma experiência maior de sofrimento sabe que não é assim. O sofrimento tem uma valência política incontornável porque ele liga os assuntos: a alimentação com a pobreza, a miséria com a família, a família com o Estado, o Estado com a saúde, a saúde com a maneira estética de viver o corpo e assim por diante. O sofrimento pode ter a estrutura de umanovela, como o Romance Familiar, de uma teoria, como as Teorias Sexuais Infantis (Freud), de um mito, como o Mito Individual do Neurótico, da poesia chinesa ou simbolista (Lacan), de uma narrativa (A. Ferro) e até mesmo encontrar sua expressão universal na tragédia (Édipopara Freud, Oresteia para M. Klein, Antígona ou Filotectes para Lacan). As pesquisas em torno da dissolução da forma romance, empreendidas por autores como Becket, Joyce e Duras, desafiam o paradigma discursivo no qual neurose foi descrita a partir da unidade narrativa-narrador, da coerência entre contar (Erzählen) e descrever (Beschreiben), da progressão articulada de conflitos, da tensão entre diegese da ação e da verticalização de personagens. Talvez não seja uma coincidência que os mesmos anos 1950, que presidiriam a emergência do DSM-1, tenham assistido, mais uma vez, a onda de declarações sobre a morte do romance. Mas isso só confirma que o tipo de unidade que encontramos na noção de neurose nos leva a sistemas simbólicos como a literatura, o mito ou os discursos sociais, e que ela pode ser redescrita consistentemente em função destes, tanto em termos semiológicos quanto diagnósticos. Mas isso exigiria reconhecer o mal-estar que preside a insuficiência das articulações entre sofrer e ter um sintoma, no interior do sistema DSM.
5. Patologias do social
Tradicionalmente, ao final de cada edição do DSM, há um espaço reservado para as chamadas síndromes culturais específicas, como o Amok (na Malásia) ou o Susto (na América Central). Mas o DSM-5 surpreende neste quesito ao trazer uma longa lista de “Outras condições que podem focar a atenção clínica”: problemas de relacionamento, rompimentos familiares, negligência ou abuso parental, violência doméstica ou sexual, negligência ou abuso conjugal, problemas ocupacionais e profissionais, situações de sem-domicílio (homeless), problemas com vizinhos, pobreza extrema, baixo salário (low income), discriminação social, problemas religiosos e espirituais, exposição a desastres, exposição a terrorismo e “não aderência a tratamento médico”. A lista exprime o interesse confesso do DSM-5 em patologias sociais, e, ao mesmo tempo, uma voracidade preocupante. Ela denota os efeitos da exclusão da noção de sofrimento, acrescidos agora da dispersão gerada pela recusa incondicional, a pensar: os sintomas no quadro de uma forma de vida, como unidade entre trabalho, desejo e linguagem.
Tão morta quanto a psicanálise e o romance, a neurose é uma forma de constituir um paradigma clínico rigorosamente simétrico à hermenêutica do sofrimento. Nela, o que se diz sobre o sofrimento depende de como ele se faz reconhecer e de como ele é ou não reconhecido pelo outro. A verdade do sofrimento neurótico se dá em estrutura de ficção, mesmo que o real, que não se consegue nomear, ao qual este do sofrimento se refere, permaneça opaco e resistente, a ser inscrito em um discurso, uma prática ou em um dispositivo qualquer de cura ou diagnóstico. Há, portanto, formas alienadas de sofrimento, assim como modalidades reificadas de reconhecê-lo. Mas isso se encontrará tanto nas categorias, elas mesmas, quanto na forma como as articulamos. A hipótese da neurose suprimida preserva a estrutura de ficcionalidade do sofrimento contra o realismo ingênuo da diagnóstica do DSM-5.
Tomando os sintomas como ironicamente destituídos de organicidade, mas, ainda assim, dotados de força de lei, a racionalidade diagnóstica do DSM, que espelha a racionalidade diagnóstica hegemônica de nossa época, permite alienar o sujeito de e em sua própria forma de vida. Qual seria sua implicação em um estado de adoecimento contra o qual ele nada pode, pois, afinal, é seu cérebro que o domina? A segmentação da neurose, como princípio causal e explicativo, cria um efeito iatrogênico difícil de tratar: até onde vai a depressão e onde começa outra coisa? Esse limite entre o moral e o patológico, entre a ação restrita do transtorno e suas consequências, habilita deserções do sujeito diante de seu sofrimento. Nunca nos é dado pelo próprio Manual, para desespero de parentes e cuidadores, até onde vai o transtorno e onde começa a vida real de responsabilidade do sujeito. Reencontramos aqui o princípio que conferia, na excluída categoria psicanalítica de neurose, a unidade entre forma de vida e patologia social, entre sofrimento e dialética do reconhecimento, entre a expressão do mal-estar e a forma etiológica de sua produção.
Antes da publicação do DSM-5, inúmeros movimentos sociais críticos pelo mundo se opuseram aos princípios de seu poder. O Stop DSM, o Por uma psicopatologia clínica não estatística e, entre nós, o Manifesto de São João del Rey emergem em associação contingente com os movimentos sociais de renovação política desde 2011. Muitos psiquiatras chegam a comparar os dois processos, afinal “o DSM seria o pior tipo de diagnóstico, mas não inventamos nenhum melhor do que ele” (parafraseando a frase de Churchill sobre a democracia). O que a psiquiatria, e parte da medicina conservadora brasileira, em particular, precisa entender é que a definição crítica de quadros psicopatológicos, a reintrodução criteriosa de noções como mal-estar e sofrimento, o diálogo científico com outras matrizes políticas e epistemológicas são passos necessários para a definição de um programa de atenção e tratamento a um objeto complexo e transversal como a saúde mental.
Mesmo que 52% dos pesquisadores envolvidos na reformulação que engendrou o DSM-5 declarem ligações formais e recebimento de proventos por parte da indústria farmacêutica, que o principal órgão de fomento a pesquisa norte-americano se recuse a usar o novo instrumento pela ausência de marcadores biológicos para as categorias propostas e que o descobridor do“déficit de atenção com hiperatividade” (TDHA), Leon Eisenberg, declare que sua descoberta é uma doença fictícia, não devemos por isso recusar a psiquiatria e a doença mental como uma invenção arbitrária de um negócio farmacêutico, que será curada ou esquecida por meio de readaptação ou integração social. Isso seria novamente desprezar a regularidade histórica de nossas formas de sofrer, bem como o real que se encontra no seu interior. Deveríamos explorar a hipótese de que o TDHA é tão fictício quanto os outros quadros, e, em seguida, examinar a possibilidade que existem ficções mais úteis que outras. Se os verdadeiros especialistas em ficções são artistas e literatos, sem eles, nossas formas de sofrimentos podem ser mais facilmente classificadas, mas certamente serão menos universais.
Christian Dunker é psicanalista e professor livre-docente do Instituto de Psicologia da USP
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