sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

ALÉM DOS MANICÔMIOS - 18 de maio/ Dia Nacional de Luta Antimanicomial




Imagem Publicada - uma foto colorida, com uma jovem haitiana, ela olha para a câmera, com sua mão esquerda sendo levada à boca, me parecendo um silenciamento imposto, que utilizo para lembrar as milhares de crianças e adolescentes que foram e estão esquecidas no Haiti, pós-terremoto e cólera, que, com certeza, estão precisando de muitos cuidados, inclusive de Saúde Mental, mas certamente não precisam de maiores exclusões ou marginalizações do que o já vivido em suas peles negras durante os tantos anos de isolamento ou miséria a que seu povo foi submetido. Talvez ela se pareça com a personagem B.H do meu texto abaixo, ainda quando era jovem e sonhava com a sua liberdade. (foto capturada na Internet)

O dia 18 de maio precisa ser, também, considerado um data para não esquecer. Além de ser um dia para combater as sutis tentativas de retomada do modelo nosocomial, principalmente quando as mídias insufladas por crimes cometidos por ''loucos'', ''maníacos'' ou '' paranóicos'' como o jovem Wellington aparecem ou explodem pedindo o retrocesso histórico. 

Mas o que não podemos esquecer? Não podemos esquecer a maioria dos que ainda estão sob tratamentos psiquiátricos segregantes, os que permanecem na Casa dos Mortos, os que compõem um imensa maioria dos que necessitam de cuidados psiquiátricos por vivenciarem os mesmos campos de exclusão que geraram um dos maiores manicômios do Brasil: o Hospital do Juqueri, em Franco da Rocha.

Foi lá que, há alguns anos atrás, como preceptor de um grupo de jovens residentes em psiquiatria, em visitação à moda de Freinet, tive contato com um dos mais importantes documentos de minha carreira. Eu vi o documento de internação da primeira paciente deste manicômio. Em 08 de novembro de 1885 era internada, no Hospicio de Juquery, São Paulo, uma mulher, preta, denominada B.H, solteira, cozinheira, católica, aos 50(?) anos, com nacionalidade Brazil(eira), e em cujo registro está escrito que a sua ''revisão'' foi realizada em janeiro de 1910. 

Esta temporalidade confirmada, na virada de século, com 25 anos sem nenhuma forma de cuidado ou real diagnóstico, lavrou o testemunho de seu sofrimento ou sua exclusão. Resta dizer que ela faleceu por lá mesmo, provavelmente não muitos anos depois deste tempo de reclusão. Porém em minha memória não deixarei nunca sua história desaparecer. E aos que me lêem solicito sua memorização crítica e desalienante.

Esta mulher negra fazia parte, à época de um grupo de cidadãos e cidadãs que precisavam sair do caminho do progresso paulistano. Eram os que mais incomodavam ao Império e sua biopolítica de higienização. Este grupo social de excluídos passou a ser um ''fardo social'', bem como um ''perigo'' também para a República. Eram os que foram lançados na marginalidade, nos cortiços e nas nova senzalas, de um espaço urbano. 

Cidades em expansão, como São Paulo, que tentavam conciliar ex-escravos, migrantes e outros habitantes de um país neorepublicano. E, assim nasce em 1885 (não em 1895 como está na Wikipédia) o Asilo de Alienados do Juquery, no mesmo tempo em que a negra B.H entra por seus portões para nunca mais sair.

A Psiquiatria nosocomial e asilar, é um dinossauro, nasceu no Brasil com um decreto imperial em 1841. O imperador Pedro II, pressionado pelos que criticavam o “abandono” em que se encontravam os alienados, incluindo-se aí os proxenetas, "débeis mentais e portadores de taras", assim chamados os loucos da época, determinou a criação de um hospício voltado ao tratamento destes alienados.

Este fato coincidirá com o surgimento da psiquiatria no país. Junto com ela um movimento de higienização social, com seus ranços históricos ligados à eugenia, quando: "os negros e os leprosos foram identificados como portadores de perigo em potencial, e foi providenciado o seu afastamento das principais vias públicas..."

A inauguração de dos primeiros hospícios brasileiros, só ocorrerá onze anos depois do decreto imperial. Institucionalizou-se a segregação, o hospital foi o melhor território panóptico para o isolamento biopolítico destas diferentes formas de excluídos e despossuídos. 

Os manicômios e as prisões andaram, então de braços dados, circulando à caça dos desviantes, nas vielas, nos bairros, favelas, entre os artistas, os boêmios, os proletários e os alcoolistas. Os tempos imperiais lusitano-brasileiros prenunciavam o que hoje vivemos com o novo modelo de Império hipercapitalista, só que agora aperfeiçoamos as técnicas em Guantanamo ou outros ''gulags'' pós-modernistas.

Portanto, mesmo com todas as críticas que se façam à Reforma Psiquiátrica, aos equipamentos substitutivos, que vão muito além dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), ou às políticas para resolutividade dos impasses em Alcóol e outras drogas, temos de reafirmar nossos compromissos com um mudança radical de paradigmas. A história do higienistas, dos fisicalistas e dos chamados organicistas atravessam e transversalizam a Psiquiatria brasileira. E, apesar dos muitos avanços científicos, como os gerados pelas Neurociências e novas tecnologias, muitos ainda se prendem a um modelo biomédico que só vê corpos-máquinas, quiça ainda apenas Vidas Nuas, no cuidado exigido pelos transtornos mentais.

Quando foi que aprendi a justificativa para a exclusão de B. H? Aprendi, há muitos anos atrás, na escola ''primária'' que os nossos (meus) ancestrais africanos eram trazidos para o Brasil, nos navios negreiros, para ''substituir a mão de obra indolente dos indígenas''. Aprendia, nas gravuras de Rugendas, que eles mereciam os castigos, com representações de negros amarrados e com as costas riscadas pelo açoite. Eles eram os ''negros fugitivos''. 

Este deveria ser o possível diagnóstico da cozinheira B. H, uma Tia Anastácia, que por algum motivo deve ter sido ''incluída'' entre os que deviam ser afastados do convívio social. Entravam em um trem, como aquele dos nazistas, e desembarcavam na estação de ferro do Juquery.

Será que podemos afirmar que B. H., ou seja as muitas mulheres, negras, pobres (hoje temos 10 milhões delas incluídas na pobreza extrema=miséria, dos 16 milhões recentemente recenseados), ainda estão sendo hospitalizadas, com todas as prerrogativas cientifico-psiquiátricas obedecidas, por estarem delirantes do desejo de um outro modo de ser, um outro de existir, um outra condição de viver e sobreviver em nosso tão progressivo e cruel mundo globalizado?

Em matéria recente sobre a presença do desemprego entre os negros e pardos, em afirmação da OIT (Organização Internacional do Trabalho), constata-se a permanência das desigualdades sociais como gênese das exclusões. Diz a matéria: "A OIT indica que apesar dos avanços na legislação antidiscriminatória, as crises econômica e social estão na origem da rejeição contra vários grupos sociais e trabalhadores migrantes"... 

E, lamentavelmente, os dados recentes do IBGE confirmarão . E, possívelmente, este será, trans-historicamente, o motivo para alguns afirmarem a necessidade de velhas técnicas de controle social e biopolítico, trazendo a cena, novamente, os velhos modelos e tecnologias de cuidado dos que enlouquecem ou tornam-se ''pacientes psiquiátricos''.

Precisaremos, em face deste revival e retomada de modelos hospitalocêntricos, lembrar a persistência de violências e os atentados aos Direitos Humanos de cidadãos e cidadãs ainda em hospitalizações forçadas e prolongadas. Lembrar e não deixar esquecer, que muitas pessoas com deficiências intelectuais (ainda chamados de ''retardados'' mentais pela psiquiatria) ainda são rotulados de 'doentes mentais', tornando-os passíveis do isolamento e do encarceramento judicializado.

Lembrar e continuar combatendo, bioéticamente, a negação da autonomia e dos direitos de quem é, sem respeito à Lei 10.216, mantido internado em hospícios e manicômios. Lembrar as medidas simplificadores, com apoio da Justiça e da Educação, com a medicalização e o internamento para jovens adolescentes em situação de vulnerabilidade social.

Ir além dos manicômios é caminhar mais ainda na sua desinstitucionalização, para além da deshospitalização, pois corremos o risco da substituição destes por "minicômios" com novas tecnologias engessadas pela total falta de recursos. Aos novos equipamentos substitutivos também cabe uma mudança paradigmática urgente, com uma permanente avaliação/análise institucional.

E, além dos muros visíveis dos manicômios, continuar a demolição de muros sutis e invisibilizados e alicerçados pelos processos de judicialização dos sofrimentos psíquicos graves, tal qual as dependências químicas, que justificam até a retomada "científica" das lobotomias ou das velhas práticas manicomiais, em especial nas Casas dos Mortos (manicômios judiciários).

Teremos, portanto, e temos o dever de reavivar, constantemente, nossas MEMÓRIAS adormecidas, atingindo o seu cerne que é a fomentação de preconceitos contra nossa própria e falível humanidade, nossa indiscutível existência na DIFERENÇA. Parodiando podemos dizer que NENHUM HOMEM PENDE INTEIRAMENTE PARA A "NORMALIDADE" e seus discursos competentes, ASSIM COMO NÃO PENDEMOS PARA OS ANJOS..., principalmente os incomodados com as Loucuras e a Diferenças, dos outros. A Saúde Mental também merece uma Comissão da Verdade...

Por 126 anos esquecemos a cozinheira no Juquery... Por quanto tempo mais devemos nos esquecer dos desviantes enlouquecidos, e, ativamente providenciar uma nova Nau dos Insensatos, agora com aprimoramentos panópticos da Sociedade do Controle e do Espetáculo?

copyright jorgemarciopereiradeandrade 2011/2012 (favor citar o Autor e as fontes em republicação livre pela Internet e outros meios de comunicação de massa)

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