quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Uma ou duas coisas que sei sobre Diane Arbus

Por  
Psicóloga, Fotógrafa, graduada em Publicidade e Propaganda com mestrado em Comunicação e Mercado. Professora dos cursos de Comunicação Social e de Psicologia do CEULP/ULBRA.

“No fundo, a fotografia é subversiva, não quando aterroriza, perturba ou estigmatiza, mas quando é pensativa.” Roland Barthes, em A Câmara Clara

Diane Arbus e sua câmera

As inquietudes da fotógrafa americana Diane Arbus são uma dádiva e um marco para a fotografia contemporânea. Enquanto uns fotógrafos nos convidam a uma incursão por belas paisagens e outros nos mostram pessoas perfeitas de corpos e mentes, ela nos apresenta a vida sob diferentes ângulos que, aos poucos, personagens estranhos, ou simplesmente incomuns,  são revelados: o diferente, o feio, o grotesco, o doente mental. Ela dá vida aos excluídos. Sua obra expressiva e desafiadora é o resultado de uma insatisfação que se manifesta catarticamente, por meio de imagens viscerais e inesquecíveis. A fotógrafa dos marginalizados expõe as “fraturas” da sociedade.
Não há como retornar a realidade do mesmo jeito depois de mergulhar no universo imagético de Arbus, acredito que nem a própria tenha conseguido tal feito. Em cada um de seus retratos há um rastro, uma latência de sua presença. Suas imagens desconcertam o nosso olhar. Somos constantemente, num jogo de ver e (re)ver, capturados pela estranha sensação que as suas fotografias provocam. O impacto transcende a questão da denúncia ou da beleza visual que certamente elas têm. Suas fotografias nos deixam marcas profundas.

 Gigante judeu em casa com seus pais no Bronx N.Y. 1970. Foto: Diane Arbus

Diane Nemerov nasceu em Nova York, em 1923, numa rica família de judeus, e sofreu com as pressões exigidas pela sua posição social. Aos 18 anos, casou-se com Allan Arbus, também fotógrafo. Com ele tomou gosto pela fotografia tornando-se sua assistente em trabalhos para revistas de moda. Mas, o mundo “perfeito” que as revistas apresentavam colocava Diane em posição de negação. Para ela, não havia mistérios nas imagens produzidas para o mercado publicitário e da moda. Em meio a esses questionamentos, decide em 1959, munida de uma Rolleiflex, procurar seu próprio caminho. E, nessa busca, ao rejeitar este universo fashion é que ela descobriu a sua marca.
Na arte da fotografia, decidiu viver uma vida nada convencional. Rompeu com os padrões sociais impostos pela família e pelo trabalho como assistente fotográfica do marido. Tornou-se uma aventureira, tendo a fotografia como sua arma. Vieira (2011) aponta que Arbus interessava-se pelo submundo, pelo marginal, pelo incomum. Para ela, a imersão neste universo tão diferente foi a maneira encontrada para compreender o seu próprio Eu. Certa vez declarou que “a fotografia era um salvo-conduto que me permitia ir a todos os lugares que eu desejasse e fazer o que quisesse”.
Nos anos de 1960, Diane Arbus tinha em comum com August Sander − fotógrafo alemão conhecido por seu trabalho documental e pelos retratos dos mais diferentes tipos humanos − e Richard Avedon - fotógrafo americano conhecido por seus retratos que capturavam a essência de seus retratados -, o interesse pelo indivíduo e a escolha pelo formato de retrato - sempre em preto e branco. Esses artistas, muitas vezes, utilizaram seus retratos como metáforas em que a sociedade americana do século 20 era colocada à prova.
Na concepção de Vieira (2011), a escolha por retratar pessoas incomuns ou em poses idiotas era intencional no seu projeto de revelar outra América, menos potente e mais decadente. Por outro lado, segundo a autora, ao sugerir um mundo em que todos são estranhos ou apresentam algo de bizarro e perturbador, a artista parecia desvelar algo íntimo. O universo particular de seus personagens era desvelado e sua obra ganha notoriedade na década de 1960 ao imortalizar Nova York como o território livre que abriga todo tipo de gente.

Sem título, 1964. Foto: Diane Arbus

O período histórico-social em que Arbus fotografou uma série de homossexuais, travestis, transsexuais e hermafroditas coincidiu com o auge da esquizofrenia da Guerra Fria. Para Kuramoto (2006) Arbus começou a fotografar essas pessoas em 1957 e teve interesse por elas até o final da vida, em 1971. Ressalta a autora que o choque que essas imagens provocam hoje é quase  irrisório quando comparado a tensão que suscitavam à época que foram produzidas.
Em 1963 Arbus ganhou uma bolsa da Fundação Guggenheim. No ano seguinte sua obra ganha espaço no Museu de Arte Moderna dos EUA. No fim daquela década a fotógrafa esteve nos asilos e hospitais e fez dos velhos, doentes e anormais seus modelos. Em seus retratos, a tragédia humana nos sensibiliza, nos choca e nos seduz. Pulsa o mórbido que habita em cada um de nós. É desta fase os perturbadores retratos grotescos.
Para Vieira (2011), o registro mais emblemático de Arbus foi justamente o retrato de um garoto comum (Child with a toy hand grenade in Central Park, N.Y.C. 1962), exibido pela primeira vez na mostra Diane Arbus Revelations. Ao fotografá-lo, ela traz para a superfície algo perturbador, revelado pelo modo como o menino segura a granada e olha para a câmera, simbolizando a máxima que caracteriza o seu estilo − a transformação de pessoas comuns em freaks (palavra inglesa de origem etimológica imprecisa, pode ser entendida como aberração ou monstro).  “Uma fotografia é um segredo que nos fala de um segredo; quanto mais parece explícita, menos somos esclarecidos”, diz Arbus.

Child with a toy hand grenade in Central Park, N.Y.C. 1962. 
Foto: Diane Arbus

Outra imagem marcante, e uma das mais conhecidas, é a fotografia das gêmeas idênticas (Identical Twins, Roselle, N. J. 1967), capa de An Aperture Monograph, de 1972. Esta imagem inspirou o gênio Stanley Kubrick no filme O iluminado.

Identical twins, Roselle, N.J. 1967. 
Foto: Diane Arbus

As fotografias de Diane Arbus representam um mergulho no que há de mais íntimo em nossos diversos “eus”. Seus personagens, expostos diante de suas lentes em poses desconcertantemente naturais, ampliam o sentido de vazio que nos habita. A fotógrafa com sua sensibilidade estética partilha conosco, por meio de seus retratos,  a beleza existente no bizarro. Compreendemos, por meio de sua obra, a relação de cumplicidade entre fotógrafo e fotografado: marca do seu trabalho. Ela nos mostra o diferente das pessoas ‘normais’. Essa interação resulta em imagens que transformam o conceito que temos de retrato: representação social de pertença, de poder.
Arbus queria muito mais que um retrato convencional, queria revelar os enigmas dos seus personagens:  imigrantes, anões, travestis, velhos, nudistas, mascarados, atores etc. “Sempre vi a fotografia como alguma coisa bagunçada, desobediente, que eu poderia fazer − e isso era justamente o que mais me atraía. Quando comecei a fotografar, me senti meio-perversa”, revelou certa vez. Torturada por seus fantasmas, em julho de 1971, aos 48 anos, foi encontrada morta em seu banheiro com cortes nos pulsos, após ingerir uma alta dose de barbitúricos.
Em 1972, a Bienal de Veneza consagrou a artista expondo seus trabalhos. Com a obra de Arbus percebemos que estamos num eterno jogo de aparências e um diálogo é travado entre o que somos e o que aparentamos ser. Assim, diante de suas imagens grotescas, nos permitimos questionar: Uma pessoa é o que ela parece ser? Somos pessoas únicas e representamos metáforas de nós mesmas?

Ela por ela:
“Estou possessa... é como se os nossos sonhos povoassem os sonhos dos outros e, infinitamente, como ramos de árvores, o livro está se multiplicando em minha mente... Também parei de fotografar por cerca de uma semana... e tenho acreditado na culpa e na inocência de fotografar (o que eu secretamente tenho chamado de coleção de borboletas).”
“Quero fotografar as cerimônias importantes do nosso presente porque, enquanto vivemos aqui e agora, tendemos a perseguir somente o que é aleatório, estéril e amorfo. Nos arrependemos pelo presente não ser como o passado e nos desesperamos pela sua marcha constante ao futuro. Os inumeráveis  e inescrutáveis hábitos do presente repousam à espera de seus significados.”

Ela por eles:
“Diane Arbus foi a artista mais corajosa do seu tempo. Corajosa porque teve iniciativa para abandonar seu conforto familiar e de trabalho para enveredar numa aventura ruidosa e praticamente sem volta. Foi uma das primeiras (como mulher e fotógrafa) a trazer um tema assimétrico para seu formato simétrico (fotografava em 6 X 6 cm). Ela trouxe para seu quadro temas impertinentes para uma sociedade acomodada e dominadora. Ela buscou entender o ‘outro’, socialmente diferenciado, trazendo-o como imagem desta mesma sociedade cuja autoimagem era completamente diferente daquela que ela evidencia. Essa coragem de se envolver com as pessoas e com tudo o que isso significava politicamente (e economicamente) a deixava quase sem forças para encarar novamente o conforto do seu espaço íntimo”. Rubens Fernandes Jr.. Pesquisador e crítico de fotografia.
“de um lado, seus retratos são vistos como transparentes, veículos metonímicos para a verdade social ou psicológica de seus assuntos. Arbus extrai significados de seus modelos. No outro extremo, encontra-se uma projeção metafórica. A obra expressaria sua visão trágica (uma visão confirmada por seu  suicídio); cada imagem é nada mais que uma contribuição para seu autoretrato”. Allan Sekula. Fotógrafo, escritor e historiador da fotografia.
“Nos retratos de Diane Arbus a pose é quase sempre curta demais, por mais que dure, o instante é átono, descentrado. Seu temp é um pouco antes ou um pouco depois.” Maurício Lissovsky. Doutor em Comunicação.
“Em todo trabalho de Arbus os mais simples acontecimentos fotográficos incorporam um tipo de literatura: enigmas, fábulas, lapsos freudianos, e a linguagem metafórica que pertence aos sonhos e aos pesadelos. Nenhuma fotografia, antes ou depois dela, fez do ato de olhar um exercício de tanta inteligência ao mostrar que olhar as coisas ordinárias significa tornar-se responsável pelo que se vê”. Richard Avedon. Fotógrafo americano e amigo de Diane Arbus.

Saiba mais:
Apesar de as fotografias de Diane Arbus causarem grande impacto no espectador, elas não são muito conhecidas no Brasil. O conhecimento veio por meio do filme A Pele (2006). Nessa narrativa fílmica, as peripécias da fotógrafa à caça de diferentes tipos personagens foram potencializados pela atriz Nicole Kidmam, que representou uma Arbus estereotipada.
Depois do suicídio, há 41 anos, toda a sua obra ficou sob a tutela da filha mais velha, Doon Arbus. Desde o lançamento do livro Diane Arbus – An Aperture Monograph (1972), apenas mais três livros foram liberados: Magazine Work (1984, esgotado), Untitled (1995) e Revelations (2003), além da biografia não autorizada Diane Arbus - A Biography, de Patrícia Bosworth. Este último resultou numa importante exposição, Diane Arbus Revelations, realizada pelo Museum of Modern Art de San Francisco.

Referências:
KURAMOTO, Emy. A representação diruptiva de Diane Arbus; do documental ao alegórico. Dissertação de Mestrado em Multimeios do Instituto de Artes da UNICAMP. Campinas, SP: 2006. Disponível em http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000400416&fd=yAcesso em 14 de setembro de 2012.
LISSOVSKY, Maurício. O refúgio do tempo no tempo do instantâneo. Lugar comum - estudos de midia, cultura e democracia, Rio de Janeiro, n. 8, 1999, p. 89-109.
SEKULA, Allan. Dismantling modernism, reinventing documentary (notes on the politics of representation). In GAIGER, J. e WOOD, P. (Org.) Art of the Twentieth century. New Haven: Yale University Press, 2003, p. 139-145.
VIEIRA, Caroline. Diane Arbus: um espelho distorcido. Revista da Cultura. Edição 50, setembro de 2011. Disponível em:     http://www.revistadacultura.com.br:8090/revista/rc50/index2.asp?page=perfil Acesso no dia 16 de setembro de 2012.

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