Gilson Iannini e Antonio Teixeira
Num futuro não muito distante…
A ciência progride a passos largos. Quem, há vinte anos, poderia prever a abrangência do DSM-11, lançado ontem? É preciso lembrar que, desde a conturbada recepção do DSM-5, há quase vinte anos, a arbitrariedade de suas classificações e a ausência de fundamentação científica foi percebida tanto pela comunidade neurocientífica quanto pela comunidade dos trabalhadores em saúde mental. Portanto, não é exagero dizer que o dia 13 de dezembro de 2031 entrará para a história. As inovações do volume lançado na noite de ontem prometem um grande avanço científico no tratamento dos transtornos mentais.
Entre as novas síndromes descritas, destacam-se a padronização do tempo de luto normal para até três dias (decorrido esse prazo, o luto deve ser tratado como depressão patológica excessivamente intensa), além da tão sonhada descrição objetiva de 27 síndromes que acometem bebês e recém-nascidos e as tão esperadas síndromes ligadas ao trabalho, à religião, às artes e à política. Além da descrição de mais 374 novas síndromes, somadas aos 1.417 transtornos descritos na última versão, o DSM-11 traz ainda um aplicativo capaz de diagnosticar quaisquer transtornos em pouco mais de três segundos, interligado a um sistema de delivery de medicamentos. Entre as novidades mais esperadas, destacam-se a “síndrome do choro sem causa aparente detectável”, o “transtorno anoréxico infantil” e a “síndrome da insônia precoce”. A “síndrome do choro sem causa aparente detectável” é conhecida de pais e educadores. Antes da última versão do DSM, era erroneamente considerada como condição normal do lactente. Agora, a recomendação é que sejam tratados com psicofármacos bebês que, a partir do terceiro mês de vida, ainda apresentem choro sem causa aparente, diariamente ou, pelo menos, três vezes por semana. Já o “transtorno anoréxico infantil” acomete bebês com mais de seis meses que se recusam a serem alimentados com alimentos sólidos ou pastosos, o que acarretaria grave prejuízo ao desenvolvimento nutricional infantil. Também foi incluída a “síndrome da insônia precoce”, que é uma grave doença, provavelmente genética, que acomete uma parcela significativa dos bebês entre 9 e 18 meses de idade e que se caracteriza pela dificuldade em dormir um sono ininterrupto por, no mínimo, nove horas seguidas. Ainda na infância, foi descrito o “transtorno egossintônico da personalidade narcísica”, que acomete crianças que se identificam ou fantasiam ser princesas ou super-heróis. No capítulo sobre adolescência, foram introduzidas a “síndrome do diário de memórias”, caracterizada por uma compulsão em escrever experiências imaginárias em linguagem cifrada nos diários íntimos e desenhar coraçõezinhos inúteis, que acomete principalmente as meninas, e a “síndrome de formação de bandas sem futuro promissor pelo menos provável”, que descreve patologias ligadas à necessidade compulsiva de se formar bandas com o gênero musical em voga. Grande avanço foi observado também com a descrição da “síndrome da indefinição profissional”, que acomete tantos adolescentes em idade de definição profissional.
No capítulo sobre os transtornos relativos ao trabalho, foi introduzido o “transtorno do déficitde produção”, o “distúrbio monomaníaco cafeíno-induzido”, conhecido também como “síndrome do cafezinho”, que acomete principalmente funcionários públicos, e o “atraso matinal monomaníaco”, que se caracteriza por chegar atrasado ao trabalho, pelo menos uma vez por mês, por até 15 minutos. No capítulo sobre religião, foi introduzido o “transtorno de crença em entidades não-verificáveis experimentalmente”, com diferentes graus de fanatismo. Esse diagnóstico, corretamente realizado, é capaz de detectar propensão a atos de terrorismo já a partir da pré-adolescência. A “síndrome do invencionismo crônico” agrupa sintomas ligados à necessidade que pessoas antes consideradas como “artistas” têm de inventar “novas maneiras” disso ou daquilo. Ficou provado que gênios, antes tidos como “artistas”, sofreram de graves transtornos psiquiátricos, facilmente solucionáveis com tratamento adequado. São sintomas dessa doença: empregar palavras fora de seu contexto descritivo ou comunicacional, desenhar pessoas com quatro braços ou tartarugas cor-de-rosa, empregar notas musicais desnecessariamente dissonantes, utilizar objetos comuns de maneira inusitada, apropriar-se do espaço de maneira não-convencional.
No campo da política, foi ampliada a “esquerdopatia crônica”, grave sintoma que acomete parte da população, que apresenta sintomas como: produção de teorias conspiratórias acerca dos interesses do capital, inconformismo com a ordem vigente, postura crítica diante da mídia, leitura regular ou irregular de livros de filosofia e outras ciências humanas, além de outros graves acometimentos. Quanto às síndromes econômicas, foi descrita a “síndrome da incapacidade de produzir riqueza”. Entre os sintomas dessa condição psicopatológica estão: pobreza crônica, endividamento, boemia, leitura recorrente de livros de poesia. Está frequentemente associada a episódios de esquerdopatia aguda.
Na categoria patologias da vida conjugal, o grave acometimento que antes respondia pelo nome de amor, foi incluído como “transtorno monoerótico imaginário”. O tratamento requer internação compulsória por um período de seis semanas e separação total da pessoa “amada”. Outra coisa que chama a atenção positivamente é a exclusão de todas as condições ligadas ao que antes se denominava “vida subjetiva”, desde a implementação da obrigatoriedade da vacina antipulsional. O que demonstra o sucesso do programa de erradicação da sexualidade humana para fins não-reprodutivos.
A verdade tem estrutura de ficção
O caráter hiperbólico do texto acima pretende apenas exibir aquilo que a versão atual do DSM-5 não consegue mais ocultar: o caráter normativo de suas classificações, fundadas num movimento vertiginoso de psiquiatrização da vida cotidiana e numa psicopatologização do mal-estar subjetivo. Pois, por mais que essa paródia nos mostre o aspecto risível desse esforço de catalogação, é preciso aceitar que, do ponto de vista puramente formal, não há nada de propriamente exorbitante numa prática classificatória, seja ela qual for. Podemos constituir classes ou grupos, bastando, para tanto, atribuir um predicado comum a determinado número de indivíduos. O problema é que as classes normalmente se compõem em torno de uma representação atributiva que um discurso destaca, como é o caso da presença de mamas na formação da classe dos mamíferos, ou de incisivos superiores pronunciados, no caso dos roedores. Mas quando se trata de classificar sujeitos, mesmo que se busque imprimir uma marca de pertencimento sobre o corpo, como no caso da circuncisão para os judeus, as classes assim constituídas não se encontram fundadas sobre nenhuma propriedade representável. Uma classe de sujeitos depende, estritamente falando, do efeito de uma nomeação, de sorte que quando dizemos que alguém é judeu, brasileiro, proletário, burguês etc., a classificação assim produzida resulta somente do proferimento do nome. Diante, portanto, da ausência de uma propriedade representável consistentemente definida para classificar os seres falantes, os idealizadores do DSM se veem livres para criar novas classes diagnósticas, a seu bel prazer, ou, o que é pior, em conformidade com os lançamentos da indústria farmacêutica ou com as exigências dos gestores de saúde.
Tudo pode ser classificado do ponto de vista de uma prática discursiva, inclusive condutas, posições políticas e mesmo o amor. Que seja. Nada impede, todavia, que tomemos, então, para nós, essa mesma liberdade classificatória e avancemos ficcionalmente até o nível virtual de um último DSM em que o catálogo se capilariza. Este último DSM deveria, portanto, descrever um transtorno que acomete, preferencialmente, gestores obcecados com a rentabilidade dos planos de saúde, frequentemente vinculados a laboratórios farmacêuticos, assim como docentes universitários financiados por laboratórios, até pouco tempo restritos às universidades norte-americanas, porém com tendência a se propagarem para outros territórios. Chamemo-la de “transtorno de compulsão classificatória avaliativa maniforme” (TCCAM), ou doença de Simão Bacamarte, em homenagem ao alienista descrito por Machado de Assis, no final do século 19, que em nosso tempo se manifesta como uma necessidade incontrolável de classificar e avaliar todo comportamento observável, assim como preencher compulsivamente espaços de “sim”, “não” e “mais ou menos” em planilhas de avaliação. Alguns desvios caracteriais evidentes dessa síndrome incluem: a incapacidade sistemática de questionar a sua própria função e a necessidade obsessiva de eliminar todo e qualquer sofrimento subjetivo. Observa-se ainda, como sinal patognomônico desse quadro, uma importante alteração do juízo de realidade, manifesta no sentimento delirante de estar no direito de classificar e avaliar os demais sem permitir que seja avaliado ou classificado o próprio exercício de avaliação. A classe dos classificadores, assim constituída, não tolera que ela própria seja classificada. Em seu delírio, os pacientes acometidos pela TCCAM, ou pela doença de Bacamarte, chegam a se arrogar o direito de definir o que é científico ou não, sem, contudo, expor critérios que possam definir a cientificidade de sua prática classificatório-avaliativa.
Essa última versão paródica do DSM tem o interesse de nos apresentar, em seu limite, o caráter autofágico de uma prática desenfreada de avaliação classificatória. É bem verdade que, até o atual momento, os classificadores do DSM não fazem parte do conjunto dos objetos classificados, tal como os catálogos do paradoxo de Russell, que não contêm a si mesmo. Mas quando criamos, com a Casa Verde virtual do DSM-11, a classe dos classificadores compulsivos que não classificam a eles próprios, o paradoxo é inevitável: essa classe contém ou não contém os classificadores? Ela os contém porque não os contém, não os contém porque os contém e daí por diante… Teríamos, então, chegado a esse feliz momento de ironia suprema, em que o classificador enlouquece e decide, tal como o alienista de Machado de Assis, internar-se e deixar-nos finalmente em paz?
Mas as coisas não são tão simples assim. Sabemos que o DSM – a despeito de sua absoluta indigência epistemológica – não será tão cedo classificado como um caso patológico de compulsão classificatória, pois existe uma estrutura exterior sobre a qual ele se sustenta. O DSM permanece coeso, a despeito de todas as modificações que possa sofrer, em razão da tríplice aliança de catálogo, pílulas e discursos que o mantêm. Em primeiro lugar, o catálogo, enquanto operador da gestão, confere ao DSM sua forma de listagem provisória, que pode ser mudada conforme se modificam os arranjos institucionais do poder ao qual ele presta serviços. Em segundo lugar, cada classe catalogada será o máximo possível vinculada à pílula terapêutica, que é a promessa de bem-estar mental em sua forma-mercadoria, sustentada pelas estratégias de marketing dos laboratórios. Associações tais como TDH-Ritalina ou Distimia crônica-Venlafaxina são emblemáticas nesse sentido. Em terceiro lugar, o discurso da tecnociência, submetido à lógica do capital, organiza a crença mercantil que associa demanda e produto – no caso, doença mental e arsenal terapêutico – numa relação de evidência supostamente controlável. Sua função é dar à associação do catálogo com a pílula a roupagem do discurso da ciência.
Mas em que pese o caráter manifestamente ideológico que aqui se faz do discurso científico, é inútil protestar contra o DSM. Podemos, aliás, dizer que é do protesto que o DSM se nutre e extrai sua permanência. Sendo o protesto uma variável do discurso da demanda, na forma trivial da queixa, nada mais fácil ao DSM do que prover meios para responder às reclamações contra seus supostos excessos, mediante renovações periódicas de suas listagens. Se Lacan tem razão ao dizer que ao protestar contra uma situação, entramos no discurso que a condiciona, é porque, assim fazendo, indicamos as correções que tornam essa situação mais suportável. A prova disso é a supressão, em 1980, do diagnóstico de histeria no DSM-3, em resposta ao protesto das feministas contra o caráter sexista dessa denominação, assim como a eliminação, a partir de 1987, da categorização patológica da homossexualidade egodistônica para satisfazer ao lobby dos homossexuais americanos.
Estamos, aliás, às voltas com um protesto recente, de grande esplendor midiático, anunciado tanto no Le Monde quanto no NYT, relativo à decisão anunciada por Thomas Insel, diretor do prestigioso Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA (NIHM), de não mais se guiar pelo DSM. O DSM não mais nos serve, diz ele, em razão da falta de cientificidade de sua classificação. Se ao menos essa atitude fosse o prenúncio de um novo esforço de se pensar o mental fora dos enquadres disciplinares usuais… Que nada! Há mais alarde do que propriamente novidade nessa informação. O caráter ateorético do DSM é, há mais de trinta anos, conhecido de todos, e Thomas Insel, diretor da NIMH, não seria certamente o último a saber disso. Do ponto de vista prático, o DSM será ainda mantido, não apesar, mas graças aos ataques que vem recebendo. Ele encontrará meios de renovar, com outros adornos, sua roupagem pseudocientífica e comporá novas listas que agradem mais aos poderes que o subvencionam.
Até mesmo porque o projeto atualmente lançado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental, coordenado por Thomas Insel, que deu origem ao Research Domain Criteria (RDoC), não produz grande diferença do ponto de vista do que se tem conhecimento na área da psiquiatria. Sua proposta de biologizar a realidade mental, de tratar o psiquismo nos termos de uma neurobiologia, nada mais é do que o velho naturalismo do antes-de-ontem de volta à cena como novidade reluzente do depois-de-amanhã, num palco arrimado pela crença de que a racionalidade tecnocientífica detém a derradeira palavra sobre a natureza e sobre o homem. A razão é mais ideológica do que epistêmica: eles bem sabem que quem hoje se vale do discurso da ciência passa a gozar de uma autoridade inquestionável, posto que não existe nenhuma instância extra-científica que nos autorize a questionar o seu veredicto.
Desse ponto de vista, se o mental será o neurobiológico, ou o físico-químico, ou o genético ou mesmo, quem sabe, o molecular, isso importa pouco. O que importa é que o nome, assim escolhido, pareça não ser apenas uma nomeação, pois esse é o atual erro do DSM: mostrar o mecanismo por detrás da mágica, revelar a impostura da qual ele é feito. O que interessa é organizar a convicção de que se pode estabelecer uma classificação da realidade mental que não seja uma pura nomeação, a partir de uma propriedade representável cientificamente, conforme a ideia que o senso comum faz da ciência neste ou naquele momento.
Não deixa, contudo, de ser interessante notar a ausência de um verdadeiro programa clínico no campo das neurociências. Isso não é casual, pois basta dar a palavra ao sujeito para se ver cair por terra esse ideal de representação científica da doença mental num código sem ambiguidades. O exemplo maior disso continua sendo o de Freud, que cedo percebeu a categoria irredutível do sujeito em sua experiência clínica. Mesmo partindo das concepções naturalistas da ciência de seu tempo, Freud se viu levado, malgrado ele próprio, a reintroduzir a subjetividade no campo metapsicológico pelo simples e fundamental gesto de escutar o que tem a dizer seu paciente. Freud, ali, encontrou um sujeito irredutível às classes que o englobam, ali onde o neurocientista visa calar o sujeito numa classe universal que o apreende sem resto.
O que caracteriza uma clínica que possa realmente sustentar esse nome é o esforço de pensar o sujeito em sua singularidade irredutível. Uma classificação diagnóstica deve ser suficientemente precisa e bem fundamentada para permitir uma estratégia de condução do tratamento, mas suficientemente aberta para pensar a maneira que cada sujeito encontra de ser inagrupável, i.e., de permanecer dessemelhante dos demais membros de sua própria classe. Toda verdadeira clínica nunca é mera técnica, mas é também uma aposta ética e política. É por esse conjunto de razões que, no atual momento, precisamos não de mais classes diagnósticas, mas de menos.
Gilson Iannini
é psicanalista e professor da Universidade Federal de Ouro Preto
Antonio Teixeira
é psiquiatra, psicanalista e professor da UFMG
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