sábado, 1 de fevereiro de 2014

Os CAPS e seus trabalhadores: no olho do furacão antimanicomial. Alegria e Alívio como dispositivos analisadores

Posted by : Residência de Psiquiatria do Cândido Ferreirasexta-feira, 31 de janeiro de 2014
Emerson Elias Merhy é sanitarista, professor de Saúde Pública e participou intensamente da construção da Reforma Psiquiatrica e Reforma Sanitária em Campinas. Gentilmente disponibilizou um de seus textos (escolhido por nós) para divulgação no blog. O texto é de 2004. Notas de roda pé foram concentradas no fim do texto para melhor adequação ao layout do blog. Mais textos do Emerson estão disponíveis no site: http://www.uff.br/saudecoletiva/professores/merhy/

Os CAPS e seus trabalhadores: no olho do furacão antimanicomial. Alegria e Alívio como dispositivos analisadores

Idéias

No seu estudo sobre o trabalho médico no Programa de Saúde da Família, em São Paulo, Angela Capozzolo teve a interessante imagem do olho do furacão, para representar o que via na promessa deste Programa em ser alternativo e substitutivo ao que chama de modelo médico hegemônico. Considera que este modelo não tem capacidade de operar a produção da saúde, pois está, antes de tudo, comprometido com os interesses econômicos e corporativos predominantes na sociedade, e não com o mundo das necessidades de saúde dos indivíduos e coletivos.

Sem discordar da visão crítica que, com a sua promessa, nos oferta do modelo médico hegemônico, o que me chamou a atenção, e da qual vou pedir algumas coisas emprestadas para a Angela, é a idéia de que: quem promete ser alternativo e substitutivo de um outro modo de produzir ações de saúde, ou mesmo, quem do seu lugar faz uma leitura crítica das formas hegemônicas de se construir práticas de saúde; só pode estar no olho do furacão.

Não quero com isso copiar os mesmos sentidos desta representação, mas ela nos ajuda a olhar o que, hoje, a rede de CAPS promete no discurso do movimento antimanicomial e no campo das estratégias para a reforma psiquiátrica, no Brasil.

Quem vem propondo, e me parece com muito acerto, que caminhar na constituição de redes substitutivas ao Manicômio é apostar na construção de CAPS, por semelhança, está em um lugar muito parecido daquele que descrevi atrás do estudo da Angela. Pois, entendo que, neste sentido, os CAPS prometem fazer a crítica do mundo manicomial e ser lugar de construção das práticas alternativas e substitutivas.

Reafirmo que as experimentações de construção dos CAPSs têm sido muito produtivas, para gerarem processos antimanicomiais; e, mais, têm de fato melhorado a vida de milhares de usuários destes serviços.

Ousaria dizer que dentre as várias missões que eles comportam, há algumas que têm mostrado a superioridade efetiva destes tipos de equipamentos perante o que a psiquiatria clássica e os manicômios construíram, nestes últimos séculos.

O fato dos CAPS estarem dirigidos, como equipamentos de saúde, para a produção de intervenções em saúde mental, que se pautam pelo(a):
  • Direito do usuário ir e vir;
  • Direito do usuário desejar o cuidado;
  •  Oferta de acolhimento na crise;
  • Atendimento clínico individual e coletivo dos usuários, nas suas complexas necessidades;
  • Construção de vínculos e referências, para eles e seus “cuidadores familiares” ou equivalentes;
  • Geração de alívios nos demandantes;
  • Produção de lógicas substitutivas em rede Matriciamento com outras complexidades do sistema de saúde Geração e oportunização de redes de reabilitação psico-social, inclusivas;
os tornam, em termos de finalidades, ao mesmo tempo, dispositivos efetivos de tensão entre novas práticas e velhos “hábitos”, e lugares de melhorias reais na construção de formas sociais de tratar e cuidar da loucura.

Por isso, estarem no “olho do furacão” antimanicomial, tornam-os lugares de manifestação dos grandes conflitos e desafios, como venho apontando no decorrer do texto; e ousar dar conta destas missões, gigantescas, é estar aberto a operar no tamanho da sua potência e governabilidade, adotando como um dos princípios o de ser um dispositivo para isso, o que implica em produzir novos coletivos para fora de si mesmo.

Neste sentido, estão no olho do furacão e, como tal, os que o estão fabricando devem e podem usufruir das dúvidas e das experimentações, e seria muito interessante que tornassem isso um elemento positivo, como marcador contra os que possam imaginar que ele já é o lugar das certezas antimanicomiais.

Esta última postura, das certezas, carrega consigo um grande perigo. Estar no olho do furacão é atiçar um inimigo poderoso: o conjunto dos que se constituíram e constituem o mundo, e um mundo, manicomial. Deste modo, ter uma postura de que na constituição dos CAPS devemos seguir modelos fechados ou receitas, é eliminar a interessante multiplicidade deste, e não aproveitar de um fazer coletivo solidário e experimental. Com isso, abre-se o flanco para que aquele inimigo poderoso seja o referencial crítico, fazendo da crítica um lugar da negação e não um campo instigante de cooperação, reflexão, auto-análise e ressignificação das práticas; que, antes de tudo, se propõem produzirem novas vidas desejantes, novos sentidos para a inclusividade social, onde antes só se realizava a exclusão e a interdição dos desejos.

Apostar alto deste jeito, é crer na fabricação de novos coletivos de trabalhadores de saúde, no campo da saúde mental, que consigam com o seus atos vivos, tecnológicos e micropolíticos do trabalho em saúde, produzirem mais vida e interditarem a produção da morte manicomial, em qualquer lugar que ela ocorra.

Aqui, estou considerando como marcador nobre, um dos eixos nucleares da reflexão, a noção de que o trabalho no campo da saúde mental - que se dirige para desinterditar a produção do desejo e, ao mesmo tempo, gerar redes inclusivas, na produção de novos sentidos para o viver no âmbito social -, é de alta complexidade, múltiplo, interdisciplinar, intersetorial e interprofissional; que, em última instância, só vinga se estiver colado a uma “revolução cultural” do imaginário social, dos vários sujeitos e atores sociais, ou seja, se constituir-se, também, como gerador de novas possibilidades anti-hegemônicas de compreender a multiplicidade e o sofrimento humano, dentro de um campo social de inclusividade e cidadanização.

Reforço que este trabalho humano tem que ser portador de capacidade de vivificar modos de existências interditados e anti- produtivos, tem que permitir que vida produza vida, implicação última de qualquer trabalho em saúde, enquanto trabalho que opera na sua dimensão tecnológica, centralmente, modos em ato de trabalho vivo, que podem e devem, na minha concepção, adquirir sentido na medida que a sua “alma” seja a produção de um cuidado em saúde dirigido para ganhos de autonomia e de vida dos seus usuários. Para quem a vida, como utilidade, faz muito sentido.

Apostar alto deste jeito é se permitir usufruir de ser lugar do novo e do acontecer em aberto e experimental, é construir um campo de proteção para quem tem que inventar coisas não pensadas e não resolvidas, para quem tem que construir suas caixas de ferramentas, muitas vezes em ato, para quem, sendo cuidador, deve ser cuidado.

Sempre será uma aposta, em boa medida, experimental, construir novos modos tecnológicos e sociais que permitam o nascer, em terreno não fértil da subjetividade aprisionada da loucura excluída e interditada, de novas possibilidades desejantes, protegidas em redes sociais inclusivas.

Por isso, para todos aqueles que estão implicados com estas apostas, imagino, que mesmo que tenhamos pistas sobre como isso foi feito em algum lugar, como algum coletivo já exercitou e realizou isso, devemos nos proteger de tornar estas experiências em paradigmas e receitas, em guias de nossas práticas; e, sabiamente, considerá- las como pistas, como momentos e lugares para mirarmos, como alimentos para digerirmos e ressignificarmos com os nossos fazeres, com os nossos coletivos reais, nos nosso mundos concretos.

Proponho entrar nesta aposta de modo crítico, solidário, experimental, impedindo que os inimigos sejam os que façam o nosso questionamento. Façamo-lo entre nós, ampliando, desta forma, nossa capacidade de inventar muitas maneiras de ser antimanicomial. Partamos do princípio de que já sabemos fazer um monte de coisas e que, também, não sabemos outras tantas, ou mesmo, fazemos coisas que não dão certo; e, com isso, vamos apostar que é interessante e produtivo construir “escutas” do nosso fazer cotidiano para captar estes ruídos, neste lugar onde se aposta no novo, mas se está diante da permanente tensão entre o novo e o velho fazer psiquiátrico e/ou seus equivalentes.

Como regra, ao nos depararmos diante de uma tarefa dessa, voltamos nosso olhar imediatamente para aquele que dá o sentido do trabalho em saúde: o usuário e seu mundo de necessidades e possibilidades; e, com correção, saimos a cata de modos de indicar que o nosso agir antimanicomial está produzindo desinterdição de desejos e inclusão. Entretanto, aqui, gostaria de uma outra viagem, pois entendo que um coletivo, que esteja implicado com este tipo de agir, para ter as capacidades que ele exige, necessita estar re-criando em si, de modo constante, mecanismos de re- produção deste coletivo, que lhe garanta enquanto lugar da vida de seus protagonistas.

Proponho, adiante, olhar para a “máquina desejante” coletivo de trabalhadores de um CAPS, como um lugar que nos estimula a falar do que estou apontando, tanto quanto aquele que analiticamente pergunta o que estamos fazendo com o usuário com o nosso trabalho em saúde.

Refletindo sobre o cotidiano de uma equipe de CAPS. Ofertando idéias

O meu olhar, que oferto nesta reflexão, vem do lugar de quem neste último ano tem se dedicado a “cuidar” de cuidadores. Termo que peço emprestado para Cinira M. Fortuna 2, que ao estudar o modus operandi de um coletivo de trabalhadores de saúde, em Ribeirão Preto, tratou desta mirada nas suas análises. Pois bem, estou ofertando um olhar deste lugar que venho ocupando junto a alguns coletivos, que operam na saúde mental, em particular na rede de Campinas, vinculado às equipes do Serviço de Saúde Cândido Ferreira.

Dentre muitas coisas interessantes e acertos que os trabalhadores realizam, vi e vejo, também, muitas dificuldades dos trabalhadores para entenderem e resolverem várias questões que estão envolvidas no seu exigente cotidiano, no qual se cruzam distintas e importantes intencionalidades. Entre elas, destaco: de um lado, a existência de um cotidiano fortemente habitado por intensas demandas de cuidado, que usuários, muito múltiplos e, facilmente, em estados de crises, têm sobre a equipe; e, do outro, pela presença marcante de um imaginário do trabalhador, de que o seu agir clínico é suficientemente ampliado e a sua rede de relações intra e intersetorial, para além da clínica, é suficientemente inclusiva, que com os seus fazeres, o louco não vai ficar nem mais enlouquecido e nem excluído.

Caminhar nestas linhas tem colocado, sobre o ombro dos trabalhadores, “pesos” importantes para o seu agir, e que facilmente geram fazeres árduos, que os fazem experimentar, o tempo todo, sensações tensas e polares, como as de potência e impotência, construindo no coletivo de trabalhadores situações bem paradoxais, nas quais cobram de si e do conjunto posicionamentos profissionais e estados de ânimos muito difíceis de serem mantidos, durante todo o tempo do trabalho; particularmente, para aqueles que ofertam seu trabalho vivo para vivificar o sentido da vida no outro.

Não é por acaso, que muitos trabalhadores, em supervisão, falam, como um lamento, da sua exaustão, da sua tristeza, da sua incapacidade de acolher o outro, o tempo todo, e do seu pavor diante das crises dos usuários. E, cobram, exatamente de si, o oposto: o de estar sempre em prontidão e apto, o de estar sempre atento e alegre, o de ofertar escuta a todo momento, que se fizer necessário, e o de tomar as crises como eventos positivos e como oportunidades.

Por estas manifestações serem comum, tão sofridas e dúbias, é que devemos nos abrir para escutá-las. E, neste sentido, é disso que quero tratar, agora. Antes de mais nada, gostaria de propor que encararemos estas situações como lugares de polaridades não excludentes, e, ao mesmo tempo, estas polaridades como constitutivas do “olho do furacão”, no qual os CAPS e seus trabalhadores se encontram. E, assim, como matérias- primas/oportunidades para se pensar, e problematizar, sobre o modo cotidiano como se fabrica, ou se pode fabricar, CAPSs anti- manicômios.

Os paradoxos do cotidiano e o que aprender com eles para pensar a produção dos anti- manicômios

De novo, restrinjo-me ao âmbito dos CAPS, pois poderia tratar da construção de anti-manicômios de uma maneira mais alargada, o que seria bem pertinente pelo fato do manicomial não ser um lugar, mas uma prática social, cultural, política e ideológica. Entretanto, para efeito do que vem sendo dito, até agora, situar-se no CAPS, já é muito.

Partindo do princípio de que só produz novos sentidos para o viver quem tem vida para ofertar, vou procurar pensar sobre uma equipe alegre, que não exaure, que atua na crise como oportunidade. Neste momento, um outro empréstimo é útil. Spinoza me ajuda a pensar – de forma bem livre - que a vida em produção, como lugar de expressão do divino que é, se manifesta de várias formas. Que a alegria é uma destas manifestações das mais interessantes, porque um corpo alegre está em plena produção de vida, está em expansão. Por isso, tomo este empréstimo, para sugerir que só pode estar implicada com um agir antimanicomial uma equipe de trabalhadores alegres. Ou seja, só um coletivo que possa estar em plena produção de vida em si e para si, pode ofertar, com o seu fazer, a produção de novos viveres não dados, em outros. Ou, pelo menos, instigá- los a isso.

Tomando a alegria como indicador da luta contra a tristeza e o sofrimento, a que são submetidos todos os coletivos de trabalhadores da saúde, podemos utilizá-lo também como analisadora das suas práticas. Não que, com isso, imagino que o coletivo seria um bando de “penélopes saltitantes”, mas que penso o quanto na dobra tristeza/alegria deste coletivo, no seu fazer cotidiano, pode estar algumas chaves auto-analíticas para remetê- lo a uma discussão de seus processos de trabalho e implicações.

Tenho experimentado, isso, com grupos de trabalhadores e me instigado a idéia de que há que se instituir como parte do cotidiano, além das supervisões institucionais e clínicas, arranjos auto-geridos pelos trabalhadores que lhes permitam re-ordenar suas tristezas e sofrimentos, realizando, inclusive, auto-cuidado de si como cuidadores. Arranjos que desloquem, mas os recoloquem, do fazer cotidiano que lhes consome em vida e em ato, como se um fosse um ser antropofágico. Situação não difícil de entender em processos de trabalho que se alimentam do trabalho vivo em ato, como qualquer agir em saúde.

Por isso, agrego, sem fundir, a idéia de exaustão ou, melhor, de combustão do trabalhador e da equipe. Aqui, o empréstimo é das linhas de investigação que vêem, no campo da saúde do trabalhador, pensando o seu “burn out” como expressão de processos de trabalho altamente exploradores e alienadores. Isto é, trago como indicador analítico a noção de exaustão do trabalhador, para se agregar ao de alegria/tristeza, no sentido de que um produtor de novas possibilidades de vida, que para isso consome a sua própria, se não produzí-la o tempo todo, exaure. Ou seja, provoca combustão total de sua energia vital.

Poder gerar processos, no cotidiano, que exponham estas questões é permitir que o coletivo pense e fale sobre isso; e, assim, atuar sobre a produção destas situações e estados. Vejo que os trabalhadores, que procuram caminhar por aí interrogam de modo bem produtivo o seu próprio fazer manicomial, interrogam o que lhes entristecem e exaurem, e com estas interrogação abrem oportunidades de se re-situarem em relação a novas possibilidades antimanicomiais.

Ofertando imagens

Imaginem algum trabalhador relatando em um encontro da equipe o sentido de não-vida que adquire ao final de cada dia de trabalho e a exaustão que sente; que, quando sai do serviço ou das atividades, sente um alívio enorme, adquire mais oxigênio e respira melhor; que não sente vontade de voltar no dia seguinte. Imaginem este trabalhador chegando em um CAPS, encontrando dezenas de usuários que irão participar de várias atividades, algumas das quais ele é responsável; e, de repente, um dos seus 20 casos-referências entra em uma crise séria, na moradia.

Este trabalhador, para dar conta destas tarefas, vai ter que se apoiar na equipe, mas vai também ter que atuar, diretamente, no seu caso- referência, vai ter que acolhê- lo na crise. Vai ter que usar de sua clínica, de suas perspicácias, de suas redes de ajuda. Vai ter que gerar intervenções singulares e novas redes. Vai ter que, e pode, aproveitar a oportunidade que a crise permite para ressignificar o Projeto Terapêutico que vem gerindo em relação àquele usuário. Pode inclusive descobrir novas pistas intersetoriais para criar outros sentidos, para vários de seus casos- referências.

Enfim, vai ter que acolher, escutar, ressignificar, expor-se a vínculos e jogos transferenciais, abrir-se em rede, atuar em linhas de fuga. Vai ter que exercer saberes tecnológicos clínicos, construir redes de encontros entre competências de intervenção, abrir- se para redes intra- saúde, que possam suportar e agregar novos agires tecnológicos, inclusive no momento de uma crise que pode se tornar um sério caso de urgência e emergência. Terá que ter rede de suporte.

Vejam, alguém exaurido e triste, sem alívio, diante de todas estas demandas e necessidades, como é que vai gerar vida, além de ter que produzir novas e inovadoras ações. Este trabalhador, se vier para um grupo que o acolha e se abra para escutá- lo, provavelmente, vai relatar diante disto tudo uma grande sensação de mais exaustão e tristeza. Uma grande sensação de impotência, ou mesmo, vai relatar que só deu conta das tarefas porque não foi antimanicomial, mas sim burocrata do atendimento. Fez o fluxo de atendimento andar, mas não o domina, nem o compreende. Só tocou o cotidiano. Gerou alívios nos outros.

De fato, muito do que tenho visto, a partir de momentos muito parecidos, são equipes relatando o seu medo com as crises, com as urgências e emergências, e o massacre que tem sido, simplesmente, tocar os fluxos de atendimento. Isto tem sido tão significativo, que em uma supervisão concreta alguns trabalhadores chegaram a montar a seguinte imagem, em uma atividade de supervisão: nós geramos alívios nos outros, mas não temos nenhum alívio para olhar e repensar o nosso trabalho; não sabemos se estamos ou não sendo um coletivo/dispositivo anti- manicômio.

E, aí, o desafio que fiz para a equipe - com a qual pude pensar e sistematizar muito do que tem neste texto -, foi o de imaginar as várias possibilidades de produção de uma alegria e um alívio, no cotidiano do trabalhador, implicado com um agir antimanicomial, encarando a produção cotidiana dos seus inversos: a tristeza e a exaustão, para poder criar uma aposta coletiva de desconstruí- las.

Nesta direção, estou sugerindo, além dos eixos alegria e combustão, tomar o foco da produção do alívio produtivo antimanicomial como uma poderosa arma a favor da construção dos CAPS anti- manicômios.
O que isso pode significar? Como imaginá- lo?

Todo processo de trabalho que captura plenamente o trabalho vivo em ato na produção, impede a construção do alívio produtivo pelo trabalhador e a equipe. Dá-lhes grau zero de liberdade para ressignificarem seus atos e inventarem novas possibilidades e sentidos para os seus fazeres produtivos. Organizar CAPSs, que aliviam os demandantes, sem se construir mecanismos descapturantes do trabalho vivo em ato, impede a possibilidade do trabalho em saúde mental tornar-se um dispostivo de intervenção anti-manicômio. O que coloca, como uma grande tarefa, a construção cotidiana de alívios para o trabalho vivo em ato gerar novos caminhos.

Como fazer, isso?

Sem receitas. Creio que cada coletivo deve problematizar, no seu fazer, a implicação com o agir antimanicomial e a construção de tempo real de trabalho, no interior da equipe, dirigindo-o, intencionalmente, para fabricar novos sentidos para o viver do louco e da loucura na sociedade, abrindo novas pistas, em cada lugar onde os CAPS são construídos.

Mas, é possível produzir alívios produtivos no interior da equipe, sem negar que uma das missões seja a de gerar alívios nos demandantes? Será que isso não exige ressignificar o que vimos entendendo como crise/oportunidade e construção de redes de intervenções na urgência e emergência, em saúde mental? É possível abrir mão de apoio em hospitais gerais? E, onde não existam, os CAPS de “alta complexidade”, para acolher e internar nas crises, resolvem?

Não conheço uma experiência definitiva que dê conta disso, mas conheço bons exemplos que mostram caminhos diversos. Há aqueles que não abrem mão de suporte especializado em hospitais gerais, para a urgência e emergência, o que me parece uma das boas idéias; há aqueles que criam serviços próprios na rede de saúde mental, de uma complexidade distinta para dar conta desta situação; há os que apostam que os CAPS, em si, devem dar conta desta situação; e, assim, por diante.

Uma equipe de trabalhadores dos CAPSs que não possa usufruir de alívios produtivos e de estados de alegria, de forma implicada, não tem muito a ofertar a não ser exaurir para gerar alívios nos outros, como o manicômio já fazia e faz. Há que radicalizar o sentimento deste “bom” medo, em relação às crises, no interior das equipes, e há que compreendê- las como um “dispositivos em rotação”, que ao operarem geram novas formas de cuidado no seu interior, mas agitam e mobilizam os outros, que compõem a rede de cuidados, neste mesmo sentido.

Creio, que ter uma rede bem articulada entre serviços de saúde mental (CAPS), serviços próprios de urgência e emergência (como os SAMUs e PSs) e equipes locais de saúde, seja essencial para dar respostas razoáveis a um dos problemas que mais somam, no imaginário social, a favor da lógica manicomial. Ou seja, enfrentar bem esta situação tem um duplo sentido: de um lado, é uma das chaves para gerar alívio produtivo nas equipes de CAPS; de um outro, ao gerar alívio nos que convivem com loucos, em crise, diminui a pressão para a segregação e exclusão.

A melhor solução encontrada é aquela que se baseia na rede necessária, que conta efetiva dos casos de urgência/emergência, sem gerar exclusão e segregação; ao revés, gerando oportunidades de intervenções terapêuticas e trabalhos intersetoriais inclusivos. O melhor é a rede, possível no local ou na região, que consiga impedir a manicomialização e, ao mesmo, não negue a necessidade de gerar alívios nos familiares (ou equivalentes) e nos cuidadores.

O que interessa, em última instância, é a oportunidade de operar novos sentidos para a ressignificação das crises, tanto no desencadeamento de projetos terapêuticos, quanto na construção de um conjunto de atividades, em rede, que tragam o usuário para ampliar suas redes de vinculação, aumentando as chances de produzir contratualização e responsabilização nas relações com os outros.

Apostar na construção de processos de trabalho que produzam cuidados para os usuários e cuidados para os cuidadores é vital, neste percurso. Permitem vivificar o trabalho em saúde que aposta na construção da qualificação de vidas. Construir a alegria e o alívio produtivo como dispositivos analisadores é um desafio para aqueles coletivos sociais que operam no “olho do furacão” e se propõem como geradores de anti- manicômios.

Notas

*Gostaria de deixar claro que este texto é um ensaio e é devedor de um trabalho coletivo com os profissionais do Cândido Ferreira, Campinas, durante o ano 2003, com quem pude vivenciar muitas situações instigantes, não confortáveis, de como é dura a vida dos que apostam na mudança. Sou devedor também de muitas de suas idéias, que, aqui, sistematizo e agrego novos elementos
*Muitos dos termos que uso, como alívio, cuidar de cuidadores, são devedores de vários outros com quem venho trabalhando. No decorrer do texto cito partes das fontes, outras ficaram tão minhas também que não as localizo, mas as reconheço como de muitos autores.
A Angela apresentou este trabalho como sua tese de doutoramento no Curso de Pós em Saúde Coletiva no DMPS/UNICAMP
A Cinira apresentou esta temática através da sua tese de doutoramento no Curso de Pós Graduação da Escola de Enfermagem da USP/RIBEIRÃO PRETO


Bibliografia

Ana Marta Lobosque Princípios para uma Clínica Antimanicomial e outros escritos Editora Hucitec São Paulo 
Angela Capozzolo No olho do furacão: trabalho médico e o programa de saúde da família Tese de doutorado Curso de Pós Graduação em Saúde Coletiva Unicamp Campinas
Angelina Harari e Willians Valentini A reforma psiquiátrica no cotidiano Editora Hucitec São Paulo Antonio Lancetti, Gregório Baremblitt et al. SaúdeLoucura 4 Editora Hucitec São Paulo
Cinira Fortuna Cuidando dos cuidadores Tese de doutorado Curso de Pós Graduação em Enfermagem EERP-USP Ribeirão Preto 
Emerson Elias Merhy A loucura e a cidade: outros mapas Publicação do Fórum Mineiro de Saúde Mental Belo Horizonte 
Gregório Baremblit et al. SaúdeLoucura 5 Editora Hucitec São Paulo

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