quarta-feira, 11 de maio de 2016

Nise, Almir, Emygdio, Abraham- 2


Nise, Almir, Emygdio, Abraham- 2


Como disse no primeiro artigo publicado sobre Nise, o coração da loucura (leia aqui), o filme de Roberto Berliner é um novelo que puxa muitos fios além da história da psiquiatra Nise da Silveira – talvez porque a médica jamais teria conseguido fazer sozinha a grande revolução na psiquiatria ocorrida no hospital do Engenho de Dentro.
Nise foi a liderança enérgica, sem papas na língua e transbordante de compaixão; a interlocutora de Jung que buscou nas teorias sobre arquétipos a comprovação de que as obras de arte realizadas por seus “clientes” no hospital psiquiátrico poderiam apontar para uma reintegração da psique. Mandalas e outras formas circulares realizadas por Emygdio de Barros, Fernando Diniz, Carlos Pertuis e demais artistas do ateliê de pintura comprovariam que o esquizofrênico não estaria partido para sempre (o prefixo “esquizo” vem de “cisão”). Catalisadora das mensagens enviadas pelas imagens do inconsciente, Nise foi uma guerreira iluminada e incansável, mas nunca esteve só.

mavignier e emygdio e palatnik
Palatnik (à esquerda), Emygdio e Mavignier: troca de influências no ateliê e em passeios pela cidade  Acervo Museu de Imagens do Inconsciente

No ótimo filme de Berliner,  o desempenho de Gloria Pires como Nise é enriquecido pela possibilidade de ela trocar com um elenco de titãs, muitos revelados pelas melhores companhias de teatro do país. Já a verdadeira Nise, indiscutível protagonista da revolução ocorrida no Engenho de Dentro, sempre soube andar cercada das melhores companhias – humanas e felinas, como destaca o filme -,  potencializando suas ações através das ideias e da lealdade de seus colaboradores.
No primeiro texto sobre o filme, tentei mostrar como  uma parte da história do samba e do subúrbio do Rio dorme subliminarmente na personagem da enfermeira Ivone (Roberta Rodrigues), ninguém menos que Dona Ivone Lara. Felipe Rocha, que vive o personagem Almir, é a ponta de outro fio de Ariadne. Almir é Almir Mavignier (1925), pintor e designer que foi o idealizador do ateliê de arte através do qual Nise mudaria o entendimento da loucura e o crítico Mario Pedrosa (no filme, Charles Fricks) questionaria alguns paradigmas da própria arte.
Conhecer um pouco da história de Mavignier – na qual mergulhei para escrever um livro sobre o artista, lançado em 2013 (leia reportagem aqui) – é fundamental para entender como o Engenho de Dentro impacta de maneira decisiva as vanguardas artísticas que vão formar os grupos Frente e Neoconcreto, pilares do construtivismo à carioca. Até hoje em atividade, Mavignier vive há mais de 50 anos na Alemanha, para onde foi estudar arte e design depois de conseguir uma bolsa na prestigiosa Escola de Ulm.
Em 1946, momento crucial de Nise, o coração da loucura, ele já era um jovem artista, aluno brilhante da pintora portuguesa Maria Helena Vieira da Silva, que havia fugido da Europa para o Brasil durante a Segunda Guerra com o marido, o também artista Arpad Szènes.  Rapaz pobre, morador de Vila Isabel, Mavignier se sustentava com um emprego como guarda de sala no hospital psiquiátrico. Quando Nise criou o Setor de Terapia Ocupacional, ele percebeu ali uma dupla oportunidade: ajudar a doutora, que sofria com a perseguição e o preconceito dos outros médicos; e conseguir um espaço para pintar, já que não tinha dinheiro para pagar um ateliê.
Foi ele quem tomou coragem para convencer Adelina Gomes (Simone Mazzer), tida pelos médicos como uma “doente violenta”, a participar das atividades de arte. Foi também ele quem se afeiçoou e reconheceu imediatamente o talento de Emygdio de Barros (no filme vivido por Claudio Jaborandy, perfeito). Emygdio é fundamental na história da ateliê – e não pelo que Mavignier possa ter ensinado a ele, mas pelo que a pintura dele foi capaz de causar a Mavignier e seu melhor amigo na época: o artista Abraham Palatnik (1928).

emygdio
Pintura de Emygdio de Barros, s/d. Museu de Imagens do Inconsciente

Como o filme de Berliner mostra bem, as inúmeras referências à história da arte nas pinturas e desenhos destes internos, que antes do hospital não tinham nenhuma formação artística, seriam inexplicáveis, não fosse Dra. Nise uma discípula do suíço Carl Gustav Jung e sua teoria do inconsciente coletivo. A partir dela, a psiquiatra traçou conexões entre as imagens retratadas por seus “clientes” e arquétipos presentes em diversas culturas – Grécia, Egito, celtas, nórdicos, germânicos – e símbolos universais. A reincidência de tais imagens se transformou em ferramenta fundamental no tratamento daquelas pessoas, mas significou uma reversão de paradigmas. Afinal de contas, Emygdio, Raphael, Carlos Pertuis, Adelina e Fernando Diniz tinham talento. Muito talento.
A loucura na raiz do construtivismo carioca
A constatação disso seria um choque e um aprendizado para o próprio Mavignier, mas também para Palatnik, Ivan Serpa e e o crítico Mario Pedrosa, que frequentariam o Engenho de Dentro a convite do monitor do ateliê.  Mavignier se aproximaria de Pedrosa, aliás, graças ao interesse do crítico pela produção dos “clientes”. Na primeira exposição do ateliê do Engenho de Dentro, realizada no então Ministério de Educação e Saúde, em 1947, Pedrosa estava ajoelhado diante de um painel de Raphael, boquiaberto, quando Mavignier o abordou, convidando-o a visitar o hospital. Anos mais tarde, o Museu de Arte Moderna de São Paulo faria a exposição “Os artistas do Engenho de Dentro”, com um texto de Pedrosa que tirava o rótulo de “pacientes” dos internos do hospital e rompia barreiras  ao nomeá-los “artistas”.

fernando diniz
Pintura de Fernando Diniz, s/d. Acervo Museu de Imagens do Inconsciente

Palatnik não tinha vínculos com o hospital, mas visitava e colaborava com frequência na rotina do ateliê. Dono de um carrinho popular, era ele quem levava Emygdio para passear na cidade, já que Mavignier achava que o artista precisava ver a vida fora dos muros do hospital para ganhar repertório em sua pintura. Em um depoimento dado a mim para o livro Almir Mavignier, em 2013, Palatnik recordou um desses passeios à Quinta da Boa Vista: “Creio que o que nos impressionou mais foi ver as consequências do passeio em várias de suas obras (…) Essas obras traziam alguns elementos evidentemente tirados do que Emygdio viu no passeio, mas apropriados e misturados com os motivos e voos imaginários que ele usava normalmente, da forma única que pessoas excepcionais costumam fazer”.
Palatnik também não esconde que a visão das obras daqueles internos teve um poder desestruturante e revolucionário em sua carreira: ele chegou a pensar em deixar de ser artista depois de ver os trabalhos daqueles que chama até hoje de “colegas”, especialmente os de Emygdio, como lembrou no mesmo depoimento:
“Considerava os artistas do Engenho de Dentro realmente meus colegas na ação de fazer arte. Mas as obras que eles faziam, naquele momento, me pareceram fantásticas. Exprimiam algo que saía de dentro deles com uma força tremenda e, perto do que eles faziam, eu me sentia vazio e incapaz de fazer algo comparável (…) Vejo claramente que o convívio com aqueles ‘artistas do inconsciente’ foi fundamental para me demonstrar o que eunão deveria fazer: a pintura figurativa, quase tradicional, que eu vinha fazendo, por melhor que alguém a pudesse considerar”.
Depois de dois anos paralisado, sem produzir, Palatnik concluiu que não poderia prosseguir na pintura. Aliou então a formação em mecânica que havia recebido em Israel com uma nova abordagem da pintura, e criou os primeiros Aparelhos cinecromáticos (1949), que o transformaram em duplo pioneiro, em termos mundiais: da arte abstrata e da arte cinética. Uma nova estruturação do seu pensamento plástico havia nascido do convívio com os internos: “Queria fazer algo que realmente se estruturasse no espaço, com uma presença constante e dinâmica, não estática e decifrada por códigos mentais”, lembra*.
Seus Cinecromáticos, aliás, seriam visto pela primeira vez em São Paulo em uma salinha do MAM contígua à já citada exposição “Artistas do Engenho de Dentro”. Tudo fruto de uma articulação de Mavignier para que seu trabalho fosse visto pelos críticos paulistas e pudesse ser aceito na 1ª Bienal de São Paulo, que seria realizada em 1951. A estratégia deu certo e, graças aos “colegas”, o Cinecromático, que não cabia nas categorias tradicionais (“escultura”, “pintura”…) que norteavam a Bienal, acabou aceito na exposição.
O quarteto Pedrosa-Serpa-Palatnik-Mavignier foi, de certa maneira, um grupo informal, sem nome e sem programa explícito, que se aglutinou espontaneamente em torno de dois eixos: no primeiro, as discussões sobre arte no apartamento de Pedrosa, sempre permeadas pelas relações de afeto entre os quatro amigos; no outro, o Engenho de Dentro, com o impacto que causou em cada um deles. Esse grupo é anterior ao Manifesto Ruptura (1952), que marca o concretismo em São Paulo, e também ao Grupo Frente e ao Manifesto Neoconcreto (1959), no Rio.
Palatnik fala de uma crise criativa depois do reconhecimento destes artistas do inconsciente. Já Mavignier caminha para a abstração de modo mais incondicional em Paris, mas cria seus primeiros trabalhos da sérieFormas (1949-1951) ainda no Rio, no Centro Psiquiátrico. A série é a ponte para a geometria e para a arte concreta. Nestes trabalhos, o artista faz, pela primeira vez, a dissociação entre as formas que estão na pintura e qualquer elemento reconhecível da natureza. A forma é eleita pelo seu “caráter privilegiado”, pelo que significa em si mesma.

mavignier e emygdio
Mavignier (esquerda) e Emygdio em um dos passeios feitos no carro de Palatnik, para enriquecer a pintura do “cliente”

O aprofundamento do artista na direção deste caminho se dá depois da viagem para a França e do ingresso na Escola de Ulm. Uma reverberação de tudo o que sua geração gostaria de fazer em termos de democratização e apreensão gestáltica e, mais do que isso, fenomenológica da forma, ecos de um Brasil “bossa nova” e otimista, que queria se modernizar. Mas o contato com as imagens profundas, em seu estado bruto e sem filtros, acessadas pelos internos do Engenho de Dentro, pode ter sido também uma porta de entrada para este universo. Assim como a cinética foi uma via alternativa – e afirmativa – para Palatnik, a abstração também foi passo fundamental da construção de um caminho mais consistente e maduro para Mavignier como pintor e artista gráfico.
A convivência destes dois artistas com os internos daquele que mais tarde seria o Museu de Imagens do Inconsciente é, como já disse, anterior ao Grupo Frente e ao Manifesto Neoconcreto. Não seria exagero, então, dizer que uma das origens do movimento construtivo carioca reside nesta convivência fronteiriça da arte com a loucura, na exploração de um território marginal no hospital psiquiátrico. Se o ateliê coletivo foi enriquecedor para aqueles que Nise chamava de “clientes”, foi também libertador e transformador para Palatnik e Mavignier. As biografias e as inquietações peculiares de cada um, tanto no campo teórico quanto nas questões estéticas, os conduziram para que se tornassem os artistas que são hoje.
A convivência com o Engenho de Dentro precisa ser revista e redimensionada como um dos fatores que deflagram a abstração, a presença da luz e do movimento no trabalho de ambos. Olhar para o trabalho de Nise pode ser ainda mais rico quando pensamos em outras experiências fronteiriças, a foz onde o Neoconcretismo desaguaria: a relação de Hélio Oiticica com estados alterados de consciência em sua obra escrita, oConglomerado/Newyorkases, em Nova York, onde também foram projetadas as Cosmococas; o “consultório” de Lygia Clark na Rua Prado Júnior, em Copacabana, e suas experiências sensoriais, diretamente ligadas a traumas, emoções e memórias de cada frequentador de suas “sessões”.
Seria o inconsciente uma raiz profunda e libertadora do construtivismo que o Brasil produziu? Acho que sim – o que aponta para a necessidade de olharmos para esse patrimônio artístico brasileiro em suas características simbólicas e narrativas, e não apenas para seus aspectos formais.
+++
*Em entrevista ao diretor Luís Felipe Sá no documentário “Disciplina do caos” (RioArte, 2005, 23 minutos).
+++
O trabalho do cabeçalho desse texto é uma das mandalas de Fernando Diniz, acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.

Um comentário:

  1. Olá. Esse texto é meu. Por favor edite e dê o crédito da autoria. Daniela Name

    ResponderExcluir