( Por Marta Vieira) A 541 quilômetros da Belo Horizonte que se rendeu à reivindicação do corte nas despesas com o transporte público, a estudante Gisleide Pereira de Carvalho, de 18 anos, trabalha duro, sem ter a quem recorrer, para ajudar a aliviar o orçamento apertado da família. Em Janaúba, no Norte de Minas Gerais, ela se junta todo dia às mulheres que buscam sustento de filhos e maridos no leito do Rio Gorutuba, mantendo a tradição das lavadeiras ao longo do afluente do Verde Grande, um dos mais importantes fornecedores de água para o Velho Chico. Gerações preservam o costume de usar a água limpa, a poucos metros do asfalto, agora misturando um hábito dos tempos em que a cidade de 66,8 mil habitantes não era servida de sistema de encanamento à necessidade moderna da comunicação pelo telefone celular e a internet.
Como no quadro de Candido Portinari (As lavadeiras, de 1943), a paisagem composta por dezenas de mulheres com água à cintura, sacudindo peças coloridas sobre tanques improvisados, revela a vida difícil diante da escassez do emprego e o esforço para melhorar a situação. Gisleide pode se considerar uma vencedora, entre cerca de 400 lavadeiras que mantêm a atividade no Gorutuba, de acordo com a frágil estatística de quem acompanha o trabalho delas, conhecido mais de perto desde a década de 1930. Nem sempre os ganhos chegam ao valor do salário mínimo no fim do mês, mas há casos de mães e filhas que já apuraram R$ 800 mensais com o trabalho no rio.
Cada trouxa de roupa lavada (oito a 10 quilos), sob encomenda de gente simples a engravatados do comércio e da indústria, vale R$ 25. Gisleide começou aos 10 anos a acompanhar a mãe, Marlinaura, e a avó Helena em direção ao rio e hoje tem mais motivos para continuar. Às 6h, ela sai de casa na bicicleta carregando 70 peças de roupas e só retorna no fim da manhã, para em seguida consultar o e-mail e percorrer a cidade, à procura de emprego como vendedora. A luta termina no horário de ir para a sala de aula do terceiro ano do ensino médio. No ano que vem, Gisleide quer prestar o vestibular para psicologia, mas até lá nem pensa em deixar o Gorutuba.
“As pessoas não têm vergonha de colocar o boné e entrar na água. O trabalho é como qualquer outro e aqui estamos em contato com a natureza. Parece que a raiva vai toda embora”, conta a estudante. Vergonha por quê? O celular usado por Gisleide, o colchão em que ela dorme e o guarda-roupa do quarto foram comprados com o dinheiro ganho nas manilhas, como foi batizado o braço formado pelo rio a 2km da barragem Bico da Pedra em Janaúba. Viúva, a mãe Marlinaura enfrentou sol forte, chuva e frio no Gorutuba para bancar as despesas de casa e conseguiu reformar a moradia.
O emprego escasso empurrou boa parte das lavadeiras para os braços do rio, que antes de oferecer suas águas ao ofício era usado pelas famílias para lavar vasilhas e a própria roupa. Zélia Anacleta Rodrigues Santos, de 47 anos, diz que a idade e o pouco estudo fecharam as portas do mercado de trabalho. Ela encontrou barreiras até mesmo nas lavouras, onde as exigências dos empregadores podem ser menores. Os dados mais recentes do Ministério do Trabalho e Emprego sobre o nível dos postos de trabalho no setor em Janaúba indicaram no mês passado que houve mais demissões do que contratações. A diferença medida pelo saldo entre os dois movimentos (admissões e cortes) ficou negativa em 1,78% na agropecuária, frente a maio de 2012.A construção civil e a indústria extrativa também promoveram mais cortes do que abertura de vagas no período analisado. Ao todo, o emprego cresceu 3,58% na comparação dos últimos 12 meses. A boa notícia ficou por conta das empresas prestadoras de serviços, que abriram 283 empregos, 12,16% a mais, frente a maio do ano passado. O resultado é importante para a economia local, já que o ramo de prestação de serviços responde por quase dois terços da produção de bens e serviços na cidade, medida pelo Produto Interno Bruto (PIB), de R$ 524,7 milhões, em 2010, dado mais recente disponível.
No balanço dos braços rodopiando as peças de roupas sobre as águas do Gorutuba, Zélia Rodrigues conta já ter mobiliado a casa em que mora com o marido e criado quatro filhos. O dinheiro ainda contribui para a compra de alimentos. “Não chego a juntar o salário mínimo, mas para mim é como se fosse um dinheirão. Aqui é preciso ter muito estudo para conseguir trabalho”, afirma. O sorriso tímido cede lugar ao semblante preocupado com o futuro das lavadeiras no Gorutuba. O medo é de contaminação do rio.
Tradição que resiste ao correr do tempo
Nos 106 quilômetros que unem Janaúba à nascente do Gorutuba, na região conhecida como Catuni, no município de Francisco Sá, as lavadeiras são vistas, embora os grupos se concentrem em Janaúba e na vizinha Jaíba. O engenheiro e consultor ambiental Aroldo Cangussu, ex-secretário de Meio Ambiente de Juatuba, reuniu dados e fotos sobre a história das lavadeiras, indicando centenas delas como chefes de família. “Numa região típica do semiárido, o Gorutuba teve grande influência como fornecedor de água para todas as atividades da população antes da chegada do encanamento à cidade. A tradição das lavadeiras persistiu depois da urbanização”, observa.
O vale do Gorutuba recebeu os índios tapuias como seus primeiros habitantes e, mais tarde, se transformou em refúgios de escravos, mistura de povos que pode ter contribuído para reforçar o hábito cultural de lavar roupa no rio. Há moradores, como Aroldo Cangussu, que fazem questão de perpetuar o costume. O consultor diz que a comunidade apoia o trabalho das lavadeiras e elas estariam longe de promover contaminação do curso d’água pelo uso de sabão.
Não fosse o rio, algumas das mulheres nem sequer poderiam se manter no trabalho, pagando os custos de água em casa, a exemplo de Maria do Carmo de Souza, de 40 anos. Ela cumpre a jornada diária de lavar roupas no Gorutuba, com a ajuda do filho Dorivaldo, de 16 anos. Os ganhos, em geral, se aproximaram de meio salário mínimo por mês nos últimos três anos. “É o trabalho que encontrei. Falta emprego na cidade”, afirma. (MV)
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