sábado, 8 de março de 2014

Raul Seixas: O maluco beleza e a força da imaginação


Por 
Psicóloga formada pelo CEULP/ULBRA. Colaboradora do (En)Cena.



Parte 1

Adianto que aqui você não encontrará nome completo, cidade natal, data de nascimento do Raul Seixas. Se quiser isso, vá no Wikipédia. A ideia aqui é de falar dele por mim com as palavras minhas e dele. Aí segue.
O que dizer de um cara que nasceu há 10 milanos atrás, foi e continua sendo de tudo um pouco/um pouco de tudo, ou melhor, o “tudo” e o “nada” (ao mesmo tempo)? O que dizer de um cara que já andou pelos quatro cantos do mundo e, do seu lado, aprendeu a ser louco, um maluco total?
É preciso abandonar aquelas velhas opiniões formadas sobre tudo o que ele foi e sobre o que dele foi consagrado para que não se cometa o erro de afogar tudo o que ele sentiu no peito e expôs, com sua voz girante, cantante e dançante, que envolvia e bailava no ar.
O que dizer de um cara habilidoso em se metamorfosear e metamorfosear as palavras, confundindo-nos com uma pergunta do tipo: “às vezes você me pergunta... perguntas não vão lhe mostrar”.
Para falar dele, sem que o mesmo se vire no diabo e fique retado, como quem viu caxinguelê, é preciso usar de muita sinceridade, como ele fez consigo e com outros enquanto viveu.


Raul Seixas é atemporal e ele mesmo dizia isso. Só alguém assim poderia controlar sua própria ‘maluquez’, misturá-la com a lucidez de sua loucura real para conseguir “transver” e transcender o mundo por onde passou, nos tempos em que passou.
Somente um sujeito corajoso (afinal, ele era um cowboy fora da lei), sensível e visionário conseguiria admitir o quanto ele mesmo era chato, e conseguiria, com palavras, dar tapas em nossas caras, perguntando: “é você se olhar no espelho (...) e saber que é humano (...) limitado (...) e você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial que está contribuindo com sua parte para o nosso belo quadro social?”.


Hoje, Raul Seixas, mais do que quando cantava, é a luz das estrelas (ou pelo menos de uma) e a cor do luar. Ele é a contradição assumida, a sinceridade e coragem juntas. Se é camuflagem? Pode ser. Ele também foi ator, blefe do jogador e dizia ser o medo do fraco e o medo de amar. Para mim, puro charme. Raulzito foi essas coisas da vida e, dentre elas, destaco a força da imaginação e a placa de contra-mão. Por vezes insatisfeito, em seus sonhos transava lugares e situações surreais que nos foram passados pela sua música. Em seus sonhos, já fez a terra parar e a pediu pra descer.
Raul dizia ser o sangue do olhar do vampiro ao mesmo tempo em que dizia ter visto Drácula sugando sangue novo e se escondendo atrás da capa. Raul dizia ser as juras de maldição ao mesmo tempo em que viu as bruxas serem queimadas nas fogueiras para pagarem seus pecados. Raul se dizia a luz que acendia e que apagava, como quem sabia muito bem da naturalidade do nascer e do morrer. Como astrólogo, ele dizia que devíamos acreditar nele, pois ele sabia da história, do seu início e do seu fim. Haja sensibilidade para enxergar de dentro pra fora e de fora pra dentro com tanta clareza.


Raulzito foi um cara que sacou que temos que pagar pra nascer e para morrer. Sacou que temos que pagar para continuar vivendo. Um cara que, ao mesmo em que reclamava, sabia que é de batalhas que se vive a vida. E sabia que a morte costuma se vestir de cetim, ser sutil e bonita.
Raul Seixas, de fato, é uma mistura de intensidades. De um lado, uma paixão incessante que ora ama, ora odeia. Ora lhe tem amor, ora lhe tem horror. Ora quer ser metamorfose ambulante, ora quer ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Ora pensa que o jeito pro mundo é um ‘break time’, ora pensa que não dá pé ficar sentado no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar.


Ele foi um cara que serenamente amou muito e muitas. E fez muito o que o diabo gosta. Compôs com sensibilidade e sinceridade a quase toda mulher com quem conviveu. Um cara que sacou que ciúme é vaidade e que um amor só dura em liberdade e assim perdeu seu medo da chuva e aprendeu o segredo da vida. Mas há de ter serenidade quem já viu o amor nascer e ser assassinado várias vezes.


Aprendeu mentir sozinho, sem precisar ler jornais. E, mesmo não tendo rolado, deu uns toques para Jimi Hendrix e Jesus Cristo se mandarem antes que fosse tarde. E para os que achavam que também já era tarde, ele mandou o recado de que a vitória não está perdida, senão quando a mão sedenta continua abaixada, coçando o saco do Al Capone.



Ele foi o excêntrico e o limítrofe. Polêmico também. Abusou e chamou a atenção sendo a mosca da sopa. Incomodou sendo o amargo da língua, o dente do tubarão e a mão do carrasco. Arriscou-se sendo a beira de um abismo raso, largo e profundo.
Já foi dona de casa, mãe, pai a avô. Já foi o filho que ele mesmo nunca teve, pois nunca veio. Já foi o telhado das telhas e, do pescador, a pesca. Já foi feito dos quatro elementos. E foi a cegueira e os olhos do cego.
Um canceriano nato, fez de si seu próprio lar. Foi um cara visionário e de tão maluco que era, tinha sonhos de sonhador, onde ele era o amor. Via sinais, ouvia recados e estava ligado ao que foi (eu fui) ao que é e está (eu sou) e ao que - se for – será (eu vou). O cara que sabia que lá longe de todas as cercas, concretas e simbólicas, que separam quintais e gentes, há uma sombra sonora de um disco voador, dirigido por um moço a quem ele clamava para leva-lo até as estrelas.


Um cara que continuou nos outros, tanto por sua marca, sua música e seu corpo. Raul Seixas foi um cara que continuou na palavra rude que disse para alguém que não gostava. Foi o cara que aguentou o cansaço desse mundo enfadonho sonhando, amando, admitindo ser louco e cantando maluquice.

Raul Seixas: ele é ele e nicuri é o diabo


Por 
Psicóloga formada pelo CEULP/ULBRA. Colaboradora do (En)Cena.


Parte 2

Para começar: o que eu disser nesse “Raul Seixas – Parte 2” não findará o manancial de coisas que poderiam ser ditas a respeito de um ícone. Adianto também que não sou conhecedora fidedigna das duzentas e tantas músicas que estão assinadas pelo nome de Raul Seixas em seus 21 álbuns. Quando comecei a escrever o primeiro texto sobre ele pensei que eu pudesse estar sendo demasiadamente pretensiosa, quando depois me toquei que - embora o texto seja publicado para qualquer pessoa ler - ele vai estar dizendo mais de mim do que do Raul Seixas. Não titubeei. Escrevi Raul Seixas – Parte 1 e escrevo agora o Raul Seixas - Parte 2. E para quem gosta de brincar com letras e números (como fez Raul na alucinada música “Os Números”), fique à vontade para escrever mais sobre esse cara, seja em forma de comentário, seja em forma de outro texto (ou qualquer outra produção que possa - de preferência - ser publicada aqui no portal).


A opção por fazer esse segundo texto veio da sensação de incompletude advinda pelo término do texto anterior. Hoje sei, como já disse, que essa sensação não cessará, mas também não me impedirá de escrever mais sobre o que eu quiser, pois já dizia Raulzito - sábio em quase tudo o que falava - que um “homem tem direito de pensar o que ele quiser, de escrever o que ele quiser” (assim como o que ele queria era o que pensava e fazia).
Adianto, leitores, que se há algum legado sobre o qual Raul fez questão de participar, foi esse de que tudo o que é da nossa vontade e do nosso querer há de estar dentro da lei, nem que essa lei seja própria e singular (o que a autentica ainda mais).


Raul Seixas parecia mesmo presar a autenticidade e dizia - como consolo ou desolo - para os que gostam de ir ao banheiro chorar, que as coisas não são bem assim. Dizia do amor rico quando multiplicado, como quem bem sabia da hora que o trem passa pela vida. E nisso do tempo passar, também sabia que não podia mais ficar parado com o cabelo grande enquanto o rock já havia se transmutado.


Falando em Rock, todo mundo sabe que Raul ficou conhecido como o pai do rock brasileiro. No entanto, conseguiu a façanha de misturá-lo às raízes de seu baião e de sua nordestinidade, legitimando ainda mais o seu estilo musical. Quer uma música rica, vigorosa e diferente? Então se embale, primeiramente, com o som do berimbau, depois dos batuques, depois do triângulo e, por fim, da bateria que encorpam a incorporante música “Mosca na Sopa”. Ali você pode sentir toda a versatilidade de um artista que conseguiu unir sons primariamente dissonantes.


Falando em dissonâncias, muitas foram as críticas proferidas frente à descrença (ou crença ao avesso) de Raul Seixas quanto à religião, como se sua música apologizasse verdades ferrenhamente escondidas. Mais uma vez, visionário, enquanto a maioria se contentava em usar colírio ou óculos escuros, Raul Seixas não batia a cara contra o muro. Sua melhor resposta, sem sombra de dúvidas, veio na voz de Um Messias Indeciso que dizia que “quem faz o destino é a gente, na mente de quem for capaz”. Esse Messias não queria ser adorado (poser!), só queria ser feliz. Acho que foi os dois!


Desculpem-me (ou não) pelo misticismo embutido no texto, mas eu não poderia deixar de dizer do equilíbrio que há entre um Sol em Câncer e uma Lua em Aquário, como era o caso do mapa astral de Raul Seixas. Ainda bem que foi assim, pois se não fosse assim não seria ele, que de Câncer herdou a sensibilidade, a imaginação e a intuição, e de Aquário herdou o desejo pela verdade e pela liberdade... e o desejo pelo desejo também! No entanto, toda essa vaidade posta e imposta descende de um ascendente em Leão que mesmo não tendo dente, ruge, e o rugido em si vira dente que abocanha e afugenta a bel prazer. Raul sabia que chorar as pitangas em forma de música era a forma mais catártica (e transcendente) que existe. 


Raul Seixas também dizia que a sentença de um homem é medida pelo quanto esse mesmo homem consegue pensar. Se você não pensa, você não corre risco, mas também não usa nem 1% de sua cabeça animal. Se você não pensa, você mergulha na cega e vazia escravidão do ser, deixando que os outros pensem por você e aprisionem confortavelmente a única forma de liberdade de você pode ter. No entanto, se você pensa, “vai fundo e dá-lhe que dá, que – depois da sua morte - não vai mais sangrar”.
Raulzito, com audácia e ousadia marcantes, pagou o preço pelo seu mirabolante pensar. Seu pensar, de tão lúcido, apresentou-se maluco, paranoico, delirante e alucinado aos cegos do castelo. Raul Seixas - enquanto recostado no muro, fumando seu cigarro – já foi invasivamente sentenciado, assassinado e comido (ou melhor, teve o cérebro comido) pelos “manda chuva”, no metrô 743. (Que mundo instigante devia existir em sua cabeçorra envolta de cachos!) Mas a morte para o Raul não era coisa de outro mundo. Aliás, transitar pelos mundos era com ele mesmo, porque, afinal, ele sempre volta, mesmo tendo ido pro almoço como o Dr. Pacheco (pois ainda não chegou a hora de ir embora), e ele fica (pra quem canta e espera a hora de chegar), e ele chega (fazendo suas curvas pra cantar), e ele ferve (como um vulcão em chamas), e ele treme (como um amor remoto que não soube viver), e ele vive (para poder contar aos filhos), e ele sobe (como quem carrega o mundo sem querer sentir), e ele sente (que a dor que escondeu no peito uma hora surge) e, surgindo, ele pode seguir sempre como o Homem que foi.
Que a riqueza de sua existência reverbere e possa pincelar nas pessoas - da forma que for - muita imaginação, ousadia, autenticidade, criatividade e coragem pra saber porque os sinos dobram.  É dessa forma que eu sinto o Raul Seixas. E é também através disso que eu acho que a vida pode vibrar mais potente e colorida. Com ele aprendi que eu sou eu e nicuri é o diabo, além de ter aprendido a escolher um sapato que não vai mais me apertar. Viva o Raul! Toca Raul!

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