domingo, 19 de maio de 2013

Nietzsche e a religião


Todo aquele que se interrogar pela concepção de Friedrich Nietzsche com relação ao cristianismo e à religião em geral deve dar um passo a mais na sua interrogação e perguntar-se pela concepção que tem o filósofo dos valores que até então atravessaram a história da moral ocidental e a história de toda moral. Um passo a mais será ainda necessário na medida em que, para Nietzsche, o que realmente subjaz à criação e à destruição dos valores são as forças e as relações de forças que não cessam de se superar, de se recriar, de se repetir, de se renovar, de se excluir e de se incluir numa dinâmica recíproca que permeia, invade, domina e determina toda a realidade, todo o existir, todo o ser.

Com efeito, se existe um problema que acompanhou e obsedou o discípulo de Dioniso, esse foi o problema das forças e das relações de forças responsáveis pela criação e pela destruição, pela construção e pela demolição dos diferentes valores. Embora a vontade de potência só se encontre plena e explicitamente elaborada no terceiro e último período do filósofo – que, na minha leitura, começa com Aurora (1881) e se estende até os últimos escritos (1888) –, este conceito já se faz presente no primeiro período – dominado pelas análises em torno da tragédia e da cultura grega em geral – e também no segundo, com Humano, Demasiado Humano I e II (1878-1880), cuja característica principal é o deslocamento de acento para um determinado tipo de moral, a moral utilitária.

Dos três conceitos básicos de Nietzsche – a vontade de potência, o niilismo e o eterno retorno –, foram os dois primeiros que principalmente pontilharam e fundamentalmente marcaram o desenrolar e a dinâmica de seu pensamento e de sua escrita. O niilismo, que é essencialmente inerente à vontade de potência, é ambíguo na medida em que se desdobra como uma contínua destruição dos antigos valores e, simultaneamente, como uma construção de novas e imprevisíveis interpretações, valorações, significações. Recriações. Não há, pois, um demolir para depois construir; há antes uma aniquilação e uma reedificação que se fazem concomitantemente, simultaneamente, na repetição e na diferença, na satisfação e na insatisfação, no gozar e no querer-mais.

Convém ressaltar que as religiões, e o cristianismo em particular, não são sinônimos de niilismo, embora, na perspectiva de Nietzsche, não se possa conceber uma religião que não moralize e, consequentemente, não encerre uma tábua ou uma hierarquia de valores. A religião cristã e as religiões orientais não subsumem o niilismo, que é um movimento muito mais amplo e do qual, enquanto forças niilistas da decadência, estas se apresentam como expressões ou manifestações essenciais. Não se pode pensar na concepção nietzschiana do judeu-cristianismo e do budismo sem vinculá-la à sua visão da religião grega no tempo da tragédia e à crítica que, já na sua primeira fase, ele endereçara à filosofia de Schopenhauer.

Os deuses do Olimpo e o Deus judaico-cristão
Com efeito, já nos seus primeiros escritos, Nietzsche denuncia o fundo moral e as relações de forças a ele subjacentes que disputam entre si a potência sob os mais variados disfarces e os mais sublimes, nobres, elevados e espirituais atributos. Segundo Nietzsche, há basicamente dois tipos de forças: as forças que afirmam e enaltecem a vida e aquelas que, ao contrário, a denigrem, depreciam, caluniam e rebaixam. Eis a razão pela qual, já na visão Dionisíaca do Mundo (1870) – escrito póstumo que data de dois anos antes da publicação do Nascimento da Tragédia –, o filósofo fazia ressaltar a superioridade da religião grega sobre as demais religiões, porquanto os deuses gregos que descrevem Homero, Hesíodo e Epicuro não são divindades que exprimem a indigência, a ascese ou o dever, mas, antes, criaturas que apontam para um excesso de força, de seiva e, consequentemente, para tudo aquilo que a vida tem de belo, de bom, de mau, de transbordante, de afirmativo e cruel. Os artistas que forjaram esses deuses eram, pois, senhores de uma fantasia genial que, projetando suas próprias imagens sobre o céu azul da Grécia, construíram um Olimpo onde essas formas podiam respirar o triunfo da potência juntamente com um sentimento de exuberância e justificação da existência e do mundo.

Curiosamente, num fragmento póstumo da mesma época – fim de 1869, primavera de 1870 –, Nietzsche analisa essa mesma problemática ao chamar a atenção para a figura do asceta cristão que, ao contrário do artista heleno, encarna o tipo do negador e destruidor da natureza. Para o autor de, as direções ascéticas são o que há de mais hostil e oposto à natureza e à fertilidade que esta encerra. No seu intuito e no seu trabalho subterrâneo de tudo negar e tudo emendar, elas já revelam o que realmente são: frutos enfezados e estiolados que a própria natureza se encarregou de rejeitar, porquanto ela não quer propagar uma raça ou uma espécie de depauperados e enfraquecidos. “O cristianismo só poderia triunfar num mundo degenerado”, diz Nietzsche.

A partir dessas considerações, súbito se adivinha: os deuses se apresentam para Nietzsche como reflexos da exuberância ou da indigência de um povo. De sorte que, quanto mais potente e aguerrida for uma nação, tanto mais exibirão os seus deuses as marcas da guerra, da conquista e do orgulho nacional. Inversamente, os deuses dos “bons”, dos falidos e dos fracos não terão senão sentimentos de vingança, de rancor e ressentimento contra tudo aquilo que eleva, transfigura e diz “sim” à vida. É o que Nietzsche já mostrava da maneira mais enfática no escrito de transição, Humano, Demasiado Humano I (1878). É o que ele também dirá num de seus últimos textos, O Anticristo, redigido no final de 1888 e publicado em 1895.

No parágrafo 114 de Humano, Demasiado Humano, que tem sintomaticamente por título “O Não-grego no Cristianismo”, o filósofo declara que os helenos não olhavam para os deuses homéricos como seres acima deles próprios, à maneira de senhores; não se viam tampouco abaixo dos deuses, como servos, ao modo dos judeus. “Viam como que apenas a imagem em espelho dos exemplares de sua própria casta que melhor vingaram; portanto, um ideal, não um contrário de sua própria essência.” Onde, porém, os deuses olímpicos se eclipsavam, a vida grega também se revelava mais sombria, mais inquieta e ameaçada de arruinar-se. “O cristianismo, por sua vez” – conclui o filósofo –, “esmagou e alquebrou completamente o homem, e o mergulhou como que em um profundo lamaçal.”

No Anticristo, Nietzsche verá essa mesma dialética em ação no seio do próprio judaísmo, na medida em que ele considera a época dos reis o período mais rico, mais próspero e potente da história de Israel. Consequentemente, Javé era a manifestação da consciência que este povo possuía da sua própria soberania, da sua força e alegria de viver. Portanto, através de Javé o povo esperava vitória e libertação; por meio dele depositavam confiança na natureza para que esta lhes concedesse aquilo de que mais necessitavam: chuva e uma colheita abundante. No entanto, essa época também devia chegar a um fim, ao qual Nietzsche atribui três causas principais: a anarquia interior, a ameaça assíria do exterior e a ascensão da classe sacerdotal ao poder. Gradualmente, portanto, o Deus de Israel, que até então refletia o orgulho e o amor-próprio de seu povo, viu-se reduzido a um Deus condicionado e vinculado a preceitos morais: toda felicidade era vista como uma retribuição pela obediência a Javé; todo infortúnio era, ao invés, recebido como uma punição pela desobediência a ele infligida.

Se esta é, pois, uma das perspectivas a partir das quais Nietzsche analisa a religião dos gregos e aquela que brotou do solo e do povo judeu, como então ele considera o budismo e a sua relação com a filosofia de Schopenhauer?

Schopenhauer, a tragédia e a negação budista da vontade
Na época em que Nietzsche redigia O Nascimento da Tragédia – publicado em janeiro de 1872 –, ele se achava sob a quase total influência de Schopenhauer. Assim, para o discípulo de Dioniso, a sabedoria trágica reproduzia, por meio da ilusão apolínea e da música dionisíaca, a mais íntima essência do mundo, da natureza, dos homens, da vontade ou, em suma, do Uno originário. No que diz respeito especificamente à música dionisíaca, esta se apresentava como um espelho sobre o qual se refletia a própria vontade universal, que nos chega como a verdade eterna ou, mais exatamente, como a verdade que jorra do fundo ou do núcleo do Uno originário.

Sem embargo, na própria obra O Nascimento da Tragédia – e mesmo em alguns textos que a preludiam –, já se vê desenhar uma tomada de posição crítica vis-à-vis de Schopenhauer. E esta posição só tenderia a acentuar-se à medida que Nietzsche fosse também se distanciando do autor de O Mundo Como Vontade e Representação. Destarte, na seção 7 daquela obra, Nietzsche critica Schopenhauer justamente naquilo que o filósofo tem de comum com o budismo: a resignação e a negação da vontade diante do sofrimento que acarreta todo desejo. Ora, na perspectiva do discípulo de Dioniso, a consolação metafísica que suscita a tragédia, e que se encarna no coro satírico, é toda ela entretecida de gozo, o gozo na sua potência indestrutível que afirma a vida, apesar do caráter mutável do mundo fenomênico. Por conseguinte, o heleno profundo que o coro vem consolar – e que lança seu olhar sobre as forças demolidoras da natureza – corre ele também o risco de “aspirar a uma negação budística da vontade”. No entanto, a arte vem em seu socorro para redimi-lo, mas, “pela arte, é a própria vida que o redime para si mesma”.

Num fragmento póstumo do verão-outono de 1884, que faz parte de seu terceiro e último período, Nietzsche se mostrará ainda mais incisivo com relação às forças niilistas da decadência, que, por natureza, são negadoras da vida e de tudo aquilo que ela tem de fértil, de belo, de abundante, de potente, de tenso, de deleitoso e sensual. Com efeito, nada repugna mais a Nietzsche do que uma religião cuja moral recomenda a domesticação dos instintos e a supressão do prazer. Esta é “uma medida de emergência tomada por naturezas que não conhecem o critério da medida e que não têm outra escolha senão a de se tornarem libertinos e porcos, ou então ascetas”. Essas naturezas – continua o filósofo – encontraram no cristianismo e no budismo um modo de pensar que é, no mais alto grau, adaptado a toda a escória dos decadentes, dos doentes e malogrados da existência. Pode-se, pois, perdoar-lhes o fato de denegrirem um mundo onde foram malsucedidos. “Mas faz parte da nossa sabedoria considerar essas doutrinas e religiões como grandes manicômios e casas de reclusão.”

Em Para Além de Bem e Mal (1886), parágrafo 56, Nietzsche defenderá uma reflexão aprofundada sobre o pessimismo livre “da estreiteza e da simplicidade semicristã e semialemã” que, segundo ele, se exprimiram por último na filosofia de Schopenhauer. Assim, prossegue o filósofo, todo aquele que tiver lançado um olhar nos abismos do pensamento mais radicalmente negador – um olhar “para além de bem e mal e não mais, como Buda e Schopenhauer, na órbita da moral e de sua ilusão” – chegará talvez a abraçar um ideal totalmente oposto: o ideal do homem mais generoso, mais exuberante e mais afirmativo que possa existir.

Ora, conquanto o problema central da filosofia de Nietzsche esteja nas forças e nas relações de forças que não cessam de se superar e de se recriar, retorna inevitavelmente a questão: não seriam justificados todos os seus ataques contra a religião, ou as religiões, justamente por elas se apresentarem, na sua perspectiva, como as manifestações essenciais das forças niilistas da decadência?

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