O 18 de maio celebra o Dia da Luta Antimanicomial, movimento encabeçado por trabalhadores dos serviços de saúde, familiares e portadores de transtorno mental, iniciado nos anos 70, que denunciava os abusos e a violação de direitos humanos dos usuários de serviços de saúde mental dentro dos hospitais psiquiátricos, os chamados manicômios.
Àquela época, o tratamento dos portadores de doenças mentais graves, como a esquizofrenia, era centrado nos hospitais. Quando em surto, eram internados por um período longo. Em alguns casos, recebiam alta após a melhora, mas como não havia serviços adequados fora do hospital para dar continuidade ao seu tratamento, eles voltavam a ter surto e eram novamente internados. Noutros casos, a família abandonava o paciente e ele passava a ser morador do hospital, mesmo que o seu quadro clínico já não justificasse a manutenção da hospitallização.
No pior dos cenários, no entanto, as pessoas eram internadas sem a menor necessidade, muitos até sem qualquer doença mental. Vários hospitais contavam com péssimas instalações, onde os pacientes não eram higienizados adequadamente e havia sim o desvio de métodos terapêuticos como forma de punição, como o uso indiscriminado da eletroconvulsoterapia, vulgo eletrochoque. Um livro-reportagem publicado não faz muito tempo, de autoria de Daniela Arbex, chamado Holocausto Brasileiro, lança luzes sobre o cenário torpe a que muitos pacientes eram submetidos em hospitais psiquiátricos, que serviam mais para isolar o paciente do convívio social do que para tratá-lo.
Dito isso, e já que estamos falando de transtorno mental, pode-se dizer que ninguém em sã consciência há de ser contra os princípios do movimento da luta antimanicomial. A nossa sociedade, psiquiatras incluídos, repudia as internações irresponsáveis, os maus-tratos aos portadores de esquizofrenia e outros transtornos e o desrespeito aos seus direitos de cidadão.
Pois bem, o movimento resultou em mudanças importantes no modo como se oferece a assistência à Saúde Mental. Houve o fechamento de muitos hospitais que mais se pareciam a um depósito de pacientes que um local de tratamento e recuperação. Estabeleceu-se os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como a forma prioritária de cuidado ao indivíduo com transtorno mental grave, que enfatizava o tratamento multidisciplinar com base comunitária, englobando não só o uso de medicação, mas a reabilitação e a inserção ocupacional e social.
O problema são os excessos e exageros em que o movimento antimanicomial se foi descambando.
O que era para ser uma luta contra as práticas manicomiais de exclusão e desrespeito aos direitos humanos transformou-se numa demonização de toda e qualquer internação psiquiátrica. O terror que se tem disseminado na população a respeito dos hospitais psiquiátricos na atualidade faz com que muitos pacientes em surto psicótico prefiram a doença à internação, e já presenciei vários familiares caírem em prantos quando lhes recomendei que o paciente devesse ser internado – parecia que o paciente estava se dirigindo ao corredor da morte.
Acabaram-se os maus hospitais (o que é ótimo), mas também se acabaram (ou se reduziu drasticamente a quantidade de leitos) os bons hospitais (o que é péssimo). Daí que um paciente com surto psicótico e com o comportamento profundamente desorganizado, ou um potencial suicida, que necessite de uma internação breve que poderá salvar a sua vida não tem um hospital onde ser internado e vai inchar as poucas emergências psiquiátricas de que se dispõe.
O movimento prega a defesa aos “diferentes modos de ser e a transformação da relação cultural da sociedade com as pessoas que sofrem por transtornos mentais”, mas o exagero de tal assertiva faz com que alguns profissionais que trabalham com Saúde Mental neguem a própria existência da esquizofrenia ou da doença mental.
Dessa forma, o risco é que o cuidado ao paciente seja feito com base mais numa ideologia construída em época de repressão e de escassez de direitos (era o tempo da ditadura militar) e que não envelheceu bem, do que com base na ciência, nas evidências científicas. O tratamento da esquizofrenia evoluiu: as internações são mais criteriosas, há medicações modernas que provocam menos efeitos colaterais, a ênfase do tratamento está tanto no emprego da menor dose possível do remédio como no tratamento com psicoterapia e terapia ocupacional, todos contribuindo para o objetivo final: a reinserção do paciente na sociedade, com a plena capacidade de exercer a sua cidadania.
A luta antimanicomial se transforma muitas vez em luta antipsiquiatria. Todos somos contra a forma com que muitos manicômios tratavam os pacientes. Mas essas “atitudes manicomiais”, isto é, o reiterado desrespeito aos direitos dos pacientes, não estão limitadas à área da psiquiatria. Qualquer um que visite um grande hospital de emergências corre o sério risco de encontrar pacientes enfileirados nos corredores. Com sorte, pode ser que haja macas para todos. Não seria isso uma atitude manicomial? E a longa espera a que pessoas são submetidas quando precisam realizar uma consulta com um especialista ou fazer um exame diagnóstico, também não se configura aí um desrespeito aos Direitos do cidadão?
Estamos aqui discutindo a forma com que tratamos os doentes mentais, mas a verdade é que há uma grande parcela da população que não tem nenhum tipo de assistência psiquiátrica, já não tinha nos anos 70 e continua não tendo agora. Recebo muitas mensagens, no site, de pessoas que moram no interior da Bahia, de Minas Gerais e outros Estados, que me perguntam o que fazer com o seu pai, esposo ou filho, que estão tendo um surto psicótico e não tem nenhum tipo de serviço psiquiátricos na cidade. O que eu posso dizer a eles?
Não se pode confundir a Psiquiatria com os manicômios do passado. E é preciso que se valorize mais a ciência e as formas de tratamento comprovadamente mais eficazes, que não se afastam de modo algum dos princípios éticos básicos exigidos àqueles que cuidam da pessoa com sofrimento mental.
A seguir, a opinião do Prof. Rodrigo Bressan, em texto publicado na Folha De S. Paulo no dia 18 de maio de 2014.
Esquizofrenia, ideologia versus ciência
Neste 18 de maio, é celebrado o dia da Luta Antimanicomial. Avanços foram obtidos nesta década de vigência da lei da reforma psiquiátrica. Em vez de ficarem à margem, os portadores de transtornos mentais graves passaram a ser atendidos em ambulatórios ou nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). No entanto, essas políticas estão anacrônicas e privam os pacientes dos melhores tratamentos.
O diagnóstico de um transtorno mental grave como a esquizofrenia é frequentemente entendido como uma sentença de comprometimento da vida em sociedade. A ciência mostra, porém, que o diagnóstico é o eixo articulador de estratégias terapêuticas para a remissão de sintomas e a reabilitação das pessoas.
Diversos trabalhos demonstram que a esquizofrenia afeta a formação de redes e que a dopamina, uma substância que promove a conexão de algumas das vias neuronais, se desregula, determinando a ocorrência de sintomas psicóticos como delírios e alucinações.
Quando uma pessoa com esquizofrenia diz estar ouvindo vozes de alienígenas, essas vozes existem de fato, não são loucura. Estudos mostram que o cérebro dessa pessoa produz as vozes, portanto, ela as está ouvindo, mas não consegue ativar áreas que permitem a percepção de que o fenômeno é uma criação da mente. Com esse sintoma, a pessoa tende a se desorganizar e fazer coisas que normalmente caracterizamos como loucuras.
Medicações são capazes de bloquear o aumento da atividade da dopamina, levando a uma redução dos delírios. Esse tratamento é fundamental para o início de um processo de reabilitação.
Estima-se que 1% da população mundial tenha esquizofrenia e os recursos gastos no tratamento da doença em países desenvolvidos são maiores do que os destinados ao tratamento de todos os tipos de câncer somados. É fundamental que o tratamento seja de longo prazo, pois o foco é tanto a reabilitação quanto a prevenção. A cada recaída, o paciente tem pioras significativas, necessitando de doses mais altas de medicação e eventualmente de internações psiquiátricas. Há um progresso da deterioração das alterações cerebrais e todo o processo de reabilitação volta à estaca zero até que haja controle dos sintomas psicóticos.
Com a progressão da doença, 30% dos pacientes ficam refratários às medicações convencionais e só o uso da clozapina* permite o controle da doença. Isso é o que preconiza a abordagem contemporânea para o transtorno. Para pacientes com dificuldade de adesão, chegaram medicações de última geração que podem ser injetadas mensalmente, reduzindo o desgaste da tomada via oral.
Dados do Programa de Esquizofrenia da Universidade Federal de São Paulo avaliando CAPS da região metropolitana de São Paulo confirmam que 30% dos pacientes com esquizofrenia são refratários ao tratamento (não respondem positivamente à medicação). Destes, 27% tomam clozapina –portanto, 73% dos pacientes refratários são negligenciados. A clozapina é fornecida pelo Estado gratuitamente. Por que não é utilizada adequadamente?
As políticas de saúde mental implementadas são pautadas em ideologias da década de 70, não incorporam os avanços das neurociências. Os transtornos mentais são muito comuns para que continuemos a vê-los com preconceito. São doenças como quaisquer outras, mas que têm a peculiaridade de afetar o órgão do corpo que nos diz quem somos.
RODRIGO BRESSAN, 45, doutor pela Universidade de Londres, é professor de medicina e coordenador do Programa de Esquizofrenia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo)
*A clozapina é uma medicação antipsicótica indicada aos pacientes com esquizofrenia que não melhoram com o uso de outros antipsicóticos.
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